Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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08 Julho 2012

Virão Chuvas Mansas, disse Sara Teasdale sobre o fim da Humanidade, explicando que nem a Primavera notaria a nossa ausência quando despontasse sobre a derradeira de todas as guerras. Contudo, mesmo estando a Guerra Fria na infância, já se desconfiava quem nem a Primavera sairia vitoriosa do espectro do inverno atómico, ou não fossem ainda recentes as duas cicatrizes do Japão, pelo que não se dirá de todo displiscente que Bradbury, ao deixar-se cativar pelo poema, se tenha focado no espaço íntimo do lar e nas consequências imediatas de tal catástrofe, rejeitando a hipótese mais mais poética de Teasdale que o Paraíso renasceria sobre a Terra.

Na década em que foi publicado, «There Will Come Soft Rains» representa um conto invulgar na Ficção Científica corrente: negativo onde os seus conterrâneos têm sido, até então, habitualmente positivos e crentes na inteligência da espécie humana; melancólico, no meio de narrativas firmes e declarativas; vazio de actores, uma vez que a sua substância consiste precisamente neste vazio, e contudo, mais forte por esse motivo; decorrendo como um longo e lento travelling panorâmico, demonstrando que há formas de unir a linguagem do cinema com a da literatura para alcançar uma sinergia única. Se não contribuiu directamente para a escolha de Bradbury enquanto argumentista de Houston, alguns anos depois, sem dúvida que não terá prejudicado. É um conto conciso e contido na sua forma, imune à passagem do tempo, como a boa Literatura - e neste caso, como em muitos, a Literatura reconheceu de imediato um dos Seus, sendo publicado na digna Collier's e não num dos muitos veículos da pulp fiction, no meio do entulho pueril ocasionalmente pontilhado por textos merecedores de imortalidade.

No conto, mecanismos subitamente tornados obsoletos continuam a cumprir rituais pré-programados para uma plateia vazia, sem a qual a sua função se tornou inútil e logo desapareceu a razão de existirem. O fogo surge como elemento redentor, acto de misericórdia, libertando-os de uma eternidade vazia de propósito. Se o autor, em idade avançada, começou a mostrar-se como ludita simpático e inócuo, foi talvez porque se viu obrigado a tornar a mensagem explícita para as novas gerações pouco habituadas a frases longas e nuances narrativas, pois já desde o início o aviso lá se encontrava. Ai da Humanidade, tanto se deixou deslumbrar pela tecnologia resultante do seu engenho que acabou por esta sendo extinta! Que melhor conto de fadas admonitório na era da tecnofantasia?

A reputação de Bradbury precedeu-o, em mim, antes da ficção. Houve um tempo em que Asimov, Heinlein e Blish transbordavam dos beirais das livrarias, mas Bradbury era presença rara - a Europa-América só o incluiu numa das colecções de FC em 2002, e se a Argonauta já lhe tinha traduzido as principais obras, fê-lo antes do meu encontro com ela, pelo que esses exemplares já não habitavam as livrarias de subúrbio que frequentava. No entanto, era muito mencionado pelos outros autores, ombrava com Asimov e Clarke enquanto um dos três grandes. Era imensa a minha curiosidade. Descobri-o finalmente a meio da década de 80, num volume da colecção Espaço da Verbo (apenas 5 magros números, mas lá dentro, tão repletos de possibilidades!) e, sim, precisamente com este conto. Este conto subtil, económico, inteligente, irónico, poético, melancólico, perfeito. E para minha sorte, estava traduzido com gosto. «Soft rains» ficaram para sempre as «chuvas mansas» no meu imaginário, incapacitando-me de atribuir laivos de qualidade às alternativas «chuvas suaves» ou «chuvas brandas» com que tradutores de outras edições as baptizariam. E como ler é estar vivo, estar consciente da vida, também o momento ficou, essa tarde de Primavera, na sala apertada de uma pequeníssima biblioteca de Junta de Freguesia, com o sol a entrar-me pelas costas e um par de colegas de escola que arrastara comigo para ler FC. Esse resultado de uma escolha ao acaso, volume de uma colecção que desconhecia. O momento permanece como uma história que se conta, pois ignoro o que aconteceu antes dele e o que terá acontecido a seguir - a não ser a decisão de regressar à biblioteca, tornar-me sócio, trazer livros emprestados, procurar reencontrar tal perfeição. Ser leitor é isto, misturar a vida com os livros a ponto de se tornarem indistintos.

Mas a perfeição tem um preço, se é com ela que se começa. Fatidicamente, Bradbury demorou a reerguer-se tão alto. As Crónicas Marcianas trouxeram a estranheza de um autor que renegava o discurso límpido e racional da física, que preferia equiparar foguetões a gafanhotos e descolagens ao verão no campo do que descrever a engenharia que os fabricara. Além de ser um não-romance, uma sequência de vinhetas coladas cujo sentido errava e que se afastava da imagem tradicional da FC. Era aquela afinal a grande obra prometida? Como a proverbial bebida, estranhei e só mais tarde viria a entranhar a abordagem poética. Era primeiro preciso entender que Bradbury nunca foi pessoa de romances, e a seguir, que não escrevia Ficção Científica. Clarke, o matemático mistico - Asimov, o racional dedutivo - Heinlein, todo ele WASP e libertário e republicanóide - crescendo numa época que privilegiava a narrativa curta e movimentada contra longa e meditativa e poética, tinham no entanto um pendor para a verosimilhança científica, e apreciavam tecnologia. Bradbury era humanista onde estes eram tecnocratas, era bucólico onde estes eram urbanos. Se o seu nome não fosse pronunciado na mesma exalação na companhia daqueles senhores, jamais as minhas expectativas teriam ficado defraudadas. Nunca fui muito compreensivo com quem não partilha o fascínio pelo funcionamento íntimo do Real. Bradbury tornou-se, então, um autor que era preciso deslocar, reposicionar - algo que não era fácil quando obras como A Cidade Fantástica (Dandelion Wine), um pequeno hino à infância que nada tinha de FC e verdadeiramente pouco de Fantasia, roubavam os poucos espaços anuais de publicação nas colecções dedicadas da época. Não foi senão mais tarde - dizia - que entendi Bradbury como talvez o primeiro, sem dúvida um dos poucos, realistas mágicos do género, alguém que apenas lhe escuta e repete a simbologia e através dela espelha um entendimento fiel e inovador das crenças e dos temores de quem lê. Sim, os foguetões eram gafanhotos de metal porque esta era a sua verdadeira natureza.

Mas que não fique a ideia errada: Bradbury continuou a chamar-me do fundo das prateleiras, ou não fosse dele o grande hino à importância da literatura que foi Fahrenheit 451 (o qual aguarda a tradução corajosa em 233 Centígrados), em versão livro e filme. Estava-se no rescaldo de certas ditaduras, e noutras enfiados nelas até ao pescoço. E também dele a ideia de salvar Thomas Wolfe - um dos melhores prosadores americanos de sempre - das garras da tuberculose para terminar a sua obra.

Para mim, Bradbury voltaria a erguer-se com «All Summer in a Day», outro dos seus contos breves sobre a capacidade das crianças em sofrer e encantar-se com igual intensidade. Evoquei-o, recentemente, no artigo «Rosebud» dedicado aos livros da vida. Na sua simplicidade e pequenez, continua poderoso como um murro na alma. Assim, como os grandes escritores.

Abençoados os que descobrem, pela primeira vez, Ray Bradbury. Que encantadora jornada os espera.

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11 Junho 2012

O Que Estranho é a frequência com que, no meu contínuo mergulho pelas entranhas do (pouco) que se possa identificar como Ficção Científica portuguesa clássica, ocasionalmente misturando-se com os praticantes da (pouca) real pulp fiction lusitana, encontro convicções desta natureza, atiradas sem qualquer contexto e sem qualquer relativização face ao género (pois não duvido que o autor tinha um tipo particular de histórias em mente).

Que o mainstream nos castigasse pela nossa ousadia de marginalidade, perfeito - faz parte do jogo. Receber invectivas destas dos que labutam ao nosso lado é mais complicado. E não - não foi o único. Mas ao menos é uma pista adicional - e importante - para compreender a dificuldade de consolidação do género neste país na época em que supostamente devia medrar.

Da entrevista de António Dias de Deus a Raul Correia, autor frequente d'O Mosquito - o negrito é nosso:

(...) D.D. - Há ainda muitas novelas, sem qualquer nome de autor. Poderia identificá-las?

R.C. - Vejamos: «O Falcão da Pradaria» - Raul Correia; «O País dos Ventos Ululantes» - José Padinha; «O Vale do Silêncio» - Raul Correia; «O Punhal do Imperador» - José Padinha?; «O Jura­mento de Águia Negra», «Um Caçador Fez testamento», «Quero Ser Palhaço», «Tobias Contou a História» - José Padi­nha? Quanto a «O Príncipe e o seu Fantasma», sabia que muitas dessas histórias eram adaptações de histórias inglesas? Essa, por exemplo, era de ficção científica. Eu nunca escreveria ficção científica, género que detesto.

D.D. - Sim, é um género que denota grande falta de imaginação.

R.C. - Pois é. Inventa-se um planeta estranho, fabricam-se uns habitantes desse planeta, e, no fim, fazemo-los actuar como se tivessem um comporta­mento humano. Ora, se houvessem outros tipos de vida, eles poderiam ser totalmente diferentes dos nossos. Até talvez nem fosse precisa a existência de água. Nós só falamos daquilo que já conhecemos.

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