Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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13 Agosto 2012

Clássicos da FC Portuguesa. Primeira parte.

TERRESTRES E ESTRANHOS é uma obra bizarra no panorama da Ficção Científica (FC) publicada em território lusitano. Datando de 1 de Junho de 1968 (primeira e única edição, pelo que se conseguiu apurar), consiste numa recolha de contos de autores estrangeiros e portugueses, com coordenação e notas de Robert Silverberg e Lima Rodrigues. Esta invulgar colaboração entre um conceituado autor norte-americano e um autor de novelas policiárias nacional explica-se rapidamente na ficha técnica, em que surge, como título da edição original, Earthmen and Strangers, com copyright exclusivo de Robert Silverberg no ano de 1966.

Uma breve consulta ao site bibliográfico Internet Speculative Fiction Database confirma a referência, tendo existido uma (primeira) edição desta obra em Setembro de 1966 pela editora Duell, Sloan and Pearce, seguida por uma segunda em 1967 e uma terceira em 1968 (além de outras posteriores que não entram no âmbito desta avaliação). Embora se desconheça qual a edição específica que teve por base a construção da versão portuguesa, entre as três indicadas houve igualdade de conteúdo, quer a nível de textos incluidos quer na ordenação dos mesmos. Observar a ordem é pertinente, pois verifica-se que o coordenador português, além de incluir textos nacionais entre os traduzidos, tomou a iniciativa de alterar a ordenação preconizada por Silverberg.

O livro é apresentado como o primeiro número da Antologia Panorama Antecipação, pertencente à editora Galeria Panorama, que desde 1967 vinha publicando, com razoável regularidade (contam-se quase vinte obras entre esse ano e o final de 1968) romances de FC de autores estrangeiros na Série Antecipação. Inaugura-se assim uma nova colecção para a editora que, supostamente, se destina a antologias de géneros variados – a respectiva apresentação na nota de abertura refere que «esta é a primeira “Antologia Panorama”. Começámos esta série pela “Antecipação”.»

Não se pode afirmar que o formato antologia seja invulgar ou surpreendente, ainda que praticado com bastante raridade pelos editores portugueses nas colecções identificáveis como sendo de FC. Efectivamente, uma das primeiras antologias assim apresentada surge tardiamente, apenas em 1965, tratando-se de De Júlio Verne aos Astronautas - Os Melhores Contos de Ficção Científica, que Lima de Freitas organizou para comemorar o 100.º número da que se prenunciava como a colecção de FC mais duradoura de Portugal, a Argonauta da editora Livros do Brasil. O formato não parece ter agradado aos directores de colecção, pois só dezenove anos mais tarde é que a Argonauta reincidirá nele, com Mensagens do Futuro, primeira parte de The Future in Question, organizada por Isaac Asimov, Martin Greenberg e Joseph Olander – no entanto, parece ter motivado os outros editores, pois, além de a Galeria Panorama lhe dedicar aquela nova colecção (que infelizmente irá durar apenas quatro números), outros livros surgem no mercado durante os seis anos seguintes, nomeadamente os da Distribuidora de Publicações (com títulos tão genéricos como, por exemplo, 10 Grandes Histórias de Ficção Científica, organizada por Groff Conklin, em 1968), da Expressão e Cultura (Às Portas da Fantasia, organizada por Kurt Singer em 1969) e a Portugal Press (Best-Seller de Ficção Científica, organizada por Roussado Pinto em 1972). Na ausência de informação sobre volume de vendas e sobre as decisões editoriais que teriam motivado esta tendência, apenas podemos especular que as antologias seriam uma forma simples de apresentar, como se de mostruário se tratasse, vários autores com diferentes abordagens sobre um tema ou sobre o género, procurando alcançar o interesse de um leque de leitores mais vasto. Também não será displiscente fazer um paralelo com a situação actual e propor como argumento que, se a mentalidade dos leitores se manteve constante, esta diversidade contribuiu para o afastamento do mercado, e não para o inverso.

O formato antologia, contudo, permitiria ao editor português apresentar uma inovação na nossa literatura de FC, que era a da contemplar a inclusão de autores portugueses, transformando e enriquecendo a edição original. É interessante referir que aconteceu precisamente no ano anterior a publicação da Antologia do Conto Fantástico Português, de Fernando Ribeiro de Mello, uma compilação abrangente que consegue reunir debaixo da mesma capa autores de várias épocas, como Álvaro de Carvalhal, Eça de Queirós, Alexandre Herculano, Teófilo Braga, Raul Brandão, Natália Correia, Ana Hatherly, entre outros, e que, não obstante as respectivas obras se situarem em temáticas mainstream, fizeram suficientes incursões no Fantástico para Mello permitir-se delinear uma proposta de tradição. Se esta obra contribuiu para a ideia de uma antologia de FC mista (nacional-estrangeira), desconhecemos, embora em ambas encontremos a presença de Natália Correia e Dórdio Guimarães. Será razoável supor que, na perspectiva do editor, se trataria de uma aposta segura, pois os leitores comprariam primeiro pela familiaridade e garantia de qualidade dos autores estrangeiros e depois pela curiosidade em conhecer o material português.

Terrestres e Estranhos contém então a seguinte sequência de textos e respectivos autores, com indicação do título original dos contos estrangeiros: Nota (Editor – presumivelmente Lima Rodrigues), Prefácio (Introduction - Robert Silverberg), Falsos Deuses (Lower Than Angels - Algis Budrys), Fora do Sol (Out of the Sun - Arthur C. Clarke), Estação Exterior (Stranger Station - Damon Knight), A Criatura (Dórdio Guimarães), Demónio Amigo (Dear Devil - Eric Frank Russel), A Nova Idade da Terra (Fernando Saldanha), Tormenta Providencial (Blind Lightning - Harlan Ellison), Destruição (Hélia), Abutres Altruístas (The Gentle Vultures - Isaac Asimov), Os Dois Marcianos (Lima Rodrigues), O Homem que Não Quis Viajar (Luís Campos), Fumos Siderais (Manuela Montenegro), Barbo (Natália Correia), Ciclo Vital (Life Cycle - Poul Anderson), A Melhor Atitude (The Best Policy - Randall Garrett), Alaree (Alaree - Robert Silverberg). A tradução é de Eduardo Saló. Não existe autoria da ilustração nem concepção da capa, que reproduz um conjunto de luzes desfocadas sem qualquer identificação com um género em particular nas quais se sobrepõe título, lista dos autores e os nomes dos coordenadores. Na contracapa, o livro é apresentado da seguinte forma: «Que estranhas experiências emocionais aguardarão os primeiros homens que se virem perante criaturas diferentes? A Ficção Científica procura responder a essas interrogações.»

Procurámos focar-nos, nesta análise, exclusivamente na apreciação dos contos portugueses. Não podemos, contudo, deixar de destacar dois pormenores curiosos sobre as alterações impostas à obra tal como pensada por Silverberg.

O primeiro, já mencionado, refere-se à re-ordenação dos contos estrangeiros por Lima Rodrigues, em que a ordenação original de Russell, Garrett, Silverberg, Anderson, Asimov, Knight, Budrys, Ellison e Clarke se tornou em Budrys, Clarke, Knight, Russel, Ellison, Asimov, Anderson, Garrett e Silverberg. É possível que, com a presença do material português, o editor se tenha apercebido de temas ou tendências que permitiriam agrupamentos de contos; contudo, se foi essa a razão, não há qualquer explicação nem identificação explicita (por exemplo, por meio de secções temáticas) no livro.

O segundo esclarece a falta de envolvimento (e consentimento) do editor estrangeiro. Conforme Silverberg nos confidenciou quando inquirido, «I received a copy of TERRESTRES E ESTRANHOS a long time ago and of course I noticed that some Portuguese stories had been added to my original anthology. The Portuguese publisher never asked my permission to do this, but I thought it was an interesting thing to do and did not make any objection to it. (Since I can't read Portuguese except in the most limited way, I had no idea whether the extra stories were good ones, but I hoped they were.) I know of no other occasion when one of my anthologies was expanded in this way by a European publisher.»

O livro abre com uma nota assinada por «Galeria Panorama». Presume-se que obviamente a autoria pertença a Lima Rodrigues, inclusive por que na ficha técnica a direcção da colecção consta como sua. Nesta, explica-se que, além do livro representar a primeira «Antologia Panorama», a intenção é de abordar vários temas, sendo «Terrestres e Estranhos» o primeiro. Esta intenção é reforçada no final, numa clara manifestação de postura editorial em que o formato antologia serve como mostruário e percurso pela diversidade da FC. Por «estranho», explica-se que será «um ser oriundo de qualquer parte, de outro ou outros mundos» com quem se imagine estar «frente a frente».

Outra postura editorial é a inclusão dos autores portugueses, cuja presença prometia ser recorrente: «Sete [histórias] são [de] autores nacionais, o que, por si só, constituirá surpresa para muitos que nos lêem. Acontece, porém, que contrariamente ao que é habitual no nosso meio, desta vez não são apresentados escondidos sob pseudónimo estrangeiro mas pelo seu próprio nome de baptismo. A cada um o que lhe pertence. Assim mesmo. Será que o pseudónimo estrangeiro melhoraria a qualidade ou o mérito dos trabalhos apresentados? Melhoraria as vendas? Decerto. Mas nem só de pão vive o homem. [...] E, sempre que possível, os autores nacionais aqui estarão, numa afirmação viva de que “também existimos”». Subjacente à afirmação de Rodrigues, está uma noção de legitimidade de certos géneros (como o policial, a FC e o western) que, pertencendo a uma ficção popular (vulgo, pulp fiction) importada do mundo anglo-saxónico, tinha dificuldades em afirmar-se quando escrita por autores nacionais e situada em territórios portugueses, recorrendo-se para tal à invenção de pseudónimos estrangeiros para enganar o leitor. Lê-se nesta intenção uma vontade de recuperar territórios não demarcados e assumir a capacidade lusitana de escrever estes géneros. Neste caso, ficou-se pelo caso único deste livro, pois autores portugueses não voltaram a figurar nos três volumes subsequentes da colecção.

O prefácio de Silverberg serve para contextualizar um pouco melhor a problemática do alienígena na FC e porque é importante abordar a relação humano/não-humano. Não se aventura além da explicação básica nem menciona textos fundamentais do género, resumindo-se à alusão sucinta da Guerra dos Mundos de H. G. Wells.

Estamos assim prontos a entrar no livro, e mais especificamente, nas contribuições portuguesas.

A primeira trata-se de A Criatura, de Dórdio Guimarães, autor mais conhecido pela sua actividade na poesia e jornalismo, e por ter sido casado com Natália Correia. Rodrigues apresenta deste modo o conto: «Em "A Criatura" dá-nos Dórdio Guimarães uma amostra do poder criador da sua fértil imaginação. As estranhas personagens que nos apresenta falam uma linguagem de ânsia e desespero, esperança e frustração. A sua. criatura — tão febrilmente esperada como a personificação de um Deus em perfeição humana — mais não era que uma amálgama disforme de caracteres, como composição feita com pedaços de todos os seres vivos que pululam por este planeta chamado terra. Tremendo o assombro, terrível a desilusão. Um mundo onde não vale a pena a existência até mesmo para um ser com poderes quase ilimitados: a Criatura.»

Nesta história, dois homens aguardam na berma de um desfiladeiro, junto a um ulmeiro, onde, segundo o mais jovem, «o melhor de nós vai eclodir». Este ser é explicado pelo homem mais velho (nenhum deles é identificado por nomes) como sendo obra sua: «Todos os segredos da vida inteligente me deram a sabedoria. Reuni numa mesma escala todas as maiores virtualidades das várias e diversificadas espécies que povoam este nosso velho planeta. De entre milhares de milhões de categorias obtive a síntese e produzi o embrião do ser primeiro e final. Um a um, todos esses dons sensoriais e psíquicos elevados a uma expressão híper, consegui enfim ordenar e fazer caber numa só criatura. Este sucesso será o fruto da sementeira da grande criação.»

Guimarães não faz qualquer tentativa de enquadramento científico, mantendo a descrição numa evanescência místico-filosófica com laivos poéticos, aos quais o uso de termos menos vulgares não contribui para a clareza exigida pela linguagem da FC. Atente-se, por exemplo, na descrição da criatura quando eclode do interior da árvore: «Os olhos abertos como radares eram uma subtil combinação dos de mosca, facetados, e disseminando múltiplas perspectivas, como os do felino, diamantinos e diafragmáticos; torvas e pétreas faces e o pescoço de um rútilo vegetal; o cristal do corpo, protegia-se de uma carapuça multicolor, típica do crustáceo; as pernas robustas como tentáculos, de coxas ventosas e rótulas flexíveis como escamadas barbatanas; um  tórax esquisito, respirando a compasso, quer por pulmões dilatando as simiescas narinas, quer por guelras absorvendo a chuva miúda das nuvens tardias e opacas do inverno precoce que mutava as alturas. O colosso cresceu um austo e agitou nervosamente as espáduas de bisonte revestidas de asas carne-metálicas e de espigões vertebrais. Um sangue vulcânico latejava-lhe as têmporas de potentes fluxos.»

Perante a visão de uma criatura tão perfeita, ambos os homens unem-se «num amplexo e apesar das idades diferentes sentiram o apelo biológico em corrente uníssona ambicionar demais», o que talvez possa ser interpretado como um desejo homossexual velado, algo sem dúvida ainda subversivo para a época em questão. A narrativa depressa se perde, contudo, pois antes de o leitor conseguir descobrir os poderes da criatura (da qual inferem que até o sol sente medo, por se deslocar subitamente no céu) ou a capacidade de elevar ou destruir a espécie humana, eis que é instigada a animar-se pelos dois homens, com o seguinte resultado imediato:

Falou em língua humana, através da boca de águia, voz líquefe de fêmea e magníficas palavras como se a própria  Terra, voluptuosamente as vibrasse:

 — Ávida é a vida. Eis o belo horrível. O desejo sinto... em. muitíssimo tamanho. Ó este coração que dentro de mim pulsa em todo o lado. Não posso... Morro de Amor!

E desfez-se em partículas e ultra-sons num clarão cem mil vezes mais luminoso do que o Sol, que ribombou o tempo.

 A narrativa termina com os dois homens em pranto.

 

(Actualizado a 14 Agosto)

Em A Nova Idade da Terra, Fernando Saldanha conjectura que o Estranho está entre nós e se manifesta, discretamente, apenas aos iniciados – muito particularmente, por intermédio de palestras em que as descobertas são sustentadas por equações extremamente complexas. De acordo com o protagonista, o Professor Santos Paulo, ao defrontar-se com a terceira ocorrência, «qualquer cérebro humano, até mesmo a mais aperfeiçoada máquina electrónica, levaria dezenas de anos a concluir aquela operação...» Mais bizarro, na sua opinião, é a inclusão, no decurso das palestras, ao lado das ditas equações, da seguinte frase em caracteres chineses, que o Professor consegue decifrar graças aos anos que passou em Macau: «NÃO É A PRIMAVERA QUE VEM TER CONVOSCO — SOIS VÓS QUE IDES TER COM A PRIMAVERA!». Com uma singular perspicácia, o uso de «convosco – sois vós» e não «connosco – somos nós» imediatamente o faz desconfiar que não se encontra perante a presença de seres humanos...

Longe de nos ser explicada a importância das equações e se estariam no cerne de desenvolvimentos científicos capazes de alterar o futuro da espécie, somos conduzidos na senda do Professor, que procura chegar cedo à próxima palestra enquanto o quadro ainda está em branco para assistir pessoalmente ao acto da escrita da equação pelo orador. Trata-se de Rogério Santos, escritor policial, cuja presença numa conferência de matemática não é explicada mas que começa a discorrer sobre as idades da Terra, revelando que estamos a atingir a nona e última das idades, a Cósmica:

— Como vêem — continuou o orador, falando agora de costas para o quadro — o Homem atingiu a sua derradeira idade. Não há dúvida que passa a ser tremenda a responsabilidade humana. Há que encarar muito seriamente o problema da evolução espiritual, que deve progredir a par das conquistas da técnica, sem o que se corre o risco de uma hecatombe grave, de efeitos imprevisíveis. O destino das civilizações está traçado astralmente e pode conceber-se com uma simples operação. No caso da Terra, temos a seguinte:—e assim falando começou a fazer rapidamente uma equação na mesma linha daquelas que tanto tinham desnorteado o professor Santos Paulo.

 Esta revelação é suficiente para o Professor abordar a colega Maria Lena, que o acompanhou na investigação, e incitá-la a telefonar para a polícia. A senhora assim pretende fazer mas depara-se com o corpo inanimado do próprio orador na sala contígua, ao mesmo tempo que este continua a debitar a sua palestra. Incitado pelos gritos de Maria Lena, o Professor acorre à sala e descobre um papel no bolso do conferencista com o seguinte texto:

«Sabíamos que tudo isto sucederia, pois a nossa civilização está milénios adiantada em relação à Terra e podemos ver o futuro, como os terrestres vêem um programa de televisão.
Somos da Nebulosa a que Vocês chamam da Cabeleira de Berenice.

Precisámos fazer uma revelação urgente à Terra. A Idade Cósmica é perigosissima e as civilizações que entram nela tanto podem progredir como regressar e até extinguirem-se por completo.

Viemos avisá-los.  Tenham cuidado.

O caminho a seguir é o da evolução espiritual, vertical e autêntica. Leiam com atenção o conceito em chinês que por quatro vezes, com esta, inserimos no quadro da sala de conferências.

Evitem o pânico. Isto que fazemos é espantosamente fácil para nós.

O corpo deste homem está como que vazio, mas todas as células estão vivas e sãs. Servimo-nos da sua personalidade para nos dar aparência humana, A nossa seria horrível para vós. Ele voltará a si logo que partamos.

Adeus! Felicidades!»

 O conto termina, logo a seguir, inconclusivo, não assumindo a hipótese colocada por si mesmo.

Destruição é o conto português seguinte. Tem autoria de Hélia, que Lima Rodrigues explica tratar-se de Maria Brito de Sousa, e sobre a qual tece comentários laudatórios («[...] poderia ser, se para tal pudesse dedicar o tempo necessário, a Agatha Christie portuguesa.») antes de terminar com uma nota de desalento sobre o próprio texto que se propõe apresentar («[...]Não é de modo algum o seu melhor, mas raramente um coordenador de trabalhos deste género consegue o melhor de cada autor e nós não somos infelizmente excepção.»).

Neste micro-conto (duas páginas) a protagonista, certo dia em que acorda tardiamente, descobre que as cores de tudo o que a rodeia mudaram drasticamente. «A mobília que antes era castanha apresentava nm estranho tom dourado. Era belo mas chocante. O tapete era de um branco cintilante e as paredes metalizadas. A própria roupa da cama mudara de branca para negra.» A violência cromática fá-la desconfiar que enlouquecera e decide visitar um médico de imediato, mas a visão da sua própria aparência no espelho, com «pele azul, dum tom forte e profundo» trava-a, deixando-se ficar em casa, desesperada. Eventualmente, a fome impele-a a alimentar-se, descobrindo que este acto também se tornara estranho.

[...] Dirigi-me para a cozinha. Lá, também tudo se transformara. Evitei pensar. A cabeça estalava de febre. Abri o frigorifico e tirei um bife e batatas já fritas. O bife estava negro e as batatas lilazes. Dominando a repugnância, comi vagarosamente. Os alimentos tinham um sabor diferente, não deixando apesar disso de serem saborosos. Tive sede e fui buscar água, que agora era de um azul-túrpido. Era também um pouco adocicada.

 Ao ligar finalmente a telefonia, descobre que o fenómeno é mundial, o que afasta a ideia de loucura e a deixa mais descansada. No entanto, uma força psíquica invade-lhe a mente, forçando-a a cantar uma lengalenga numa língua desconhecida, caminhar até à janela, abri-la, passar além do parapeito. Vários corpos estão tombados por terra. E também ela, sem obter resposta à interrogação que lança a esta vontade, salta do décimo-sétimo andar.

(Actualização - 11 Setembro)

Em «Os Dois Marcianos», conto que o próprio organizador lusitano escolheu para se fazer representar (opção editorial bastante comum na FC, tendo inclusivamente Silverberg exercido-a na obra original - não obstante haver uma certa legitimidade questionável no acto de os organizadores se escolherem a si mesmos a que os criticos não são totalmente insensíveis), encontramos um caçador que, atravessando os montes em busca de aves, acompanhado da cadela perdigueira, se depara com um encontro inesperado.

O meu susto não advinha propriamente de ver surgir um vulto à minha frente, mas tão somente do vulto que tinha surgido: vestia um fato espacial, com a cabeça metida numa esfera de vidro ou matéria plástica transparente. O seu rosto era o de um homem adulto com corpo de criança.

Este ser, que rapidamente se mostra acompanhado por um companheiro com trajes idênticos, aborda o protagonista com bastante pragmatismo.

— Terrestre — pronunciou um deles.— Estamos aqui em missão pacífica.
— Pois —acrescentou o outro.
— Não viemos de Marte com outras intenções que não fossem as de estabelecer relações de paz e amizade com a Terra — prosseguiu o que falara primeiro.

As ditas relações consistem num interrogatório imediato sobre as intenções dos humanos na área da conquista espacial. O nosso protagonista, fazendo uso de um juízo mundano, pensa que aqueles seres não passam de meras crianças entretidas numa brincadeira e oferece respostas a condizer. Mas como estranha a insistência, em breve se cansa e, virando-lhes costas, regressa junto do grupo que o acompanhava. O encontro nada deve ter significado para os supostos marcianos, pois não tentam sequer segui-lo nem impedi-lo de divulgar a presença deles.

De novo reunido com os restantes caçadores, fica a saber que um deles jura ter avistado um disco voador pousar no eucaliptal mais próximo, o que dá aos companheiros a natural desculpa para gozar com ele. O protagonista relaciona de imediato o evento com a sua experiência (afinal os miúdos não eram miúdos coisa nenhuma...), e informa que, por sua vez, tinha encontrado os marcianos. A única consequência deste acto é de, também ele, se tornar alvo de chacota.

O conto termina assim; indiferente às consequências de tais encontros e aos possíveis actos seguintes, quer dos extraterrestres quer dos humanos; ignorante da reacção do grupo perante a insistência dos amigos, que naturalmente acabaria por despertar alguma curiosidade em descobrir evidências físicas; imperturbável inclusive perante o enorme potencial satírico de um enredo em que o dito protagonista, pensando tratar-se de um jogo infantil, inventaria que a Terra acumulava há décadas e em pleno segredo uma força bélica destinada a destruir o planeta vermelho, enriquecendo a sua ficção com tal maestria que não só os alienígenas acreditariam como regressariam a casa para alertar os seus... descobrindo-se subtilmente o motivo, nunca percebido pela Humanidade, pelo qual os marcianos de Wells nos atacaram!

Rodrigues mostra-se imune às possibilidades destas variantes narrativas. Não é à toa que nos avisa na nota biográfica introdutória que o conto representava a sua estreia no género fantástico – rematando com a devida auto-crítica:

Não espere, porém, quem conhece Lima Rodrigues o seu «final de choque» no conto que se lhe oferece seguir. Como primeira experiência num novo género, houve da parte do autor a preocupação de uma busca de novos motivos de interesse forte. O que só lhe fica bem, e constitui mérito inegável a juntar a mais outros tantos.

Como bem nos tinha avisado a nota biográfica do conto precedente, um coordenador de trabalhos deste tipo está sempre à mercê dos seus autores.

Segue o único autor, do leque escolhido, que poderemos enquadrar na designação pulp, quer pelo trabalho entretanto efectuado (de acordo com a nota biográfica, teria já escrito vários romances, contos e argumentos para filmes) quer pelo trabalho futuro no género policial português que realizaria ao lado de Roussado Pinto. Em 1968 já utilizava o pseudónimo Frank Gold (desde Madrugada Depois da Morte) pelo qual viria a ser melhor conhecido, mas é com o nome de baptismo – Luís de Campos – que assina o conto «O Homem Que Não Quis Viajar».

O tema do Estranho traduz-se também nesta história pelo encontro com o Alienígena.

Deparamo-nos com o sr. Pitkin ao volante de um Buick de 56 numa fria noite do Novo México. Através de uma agradável economia narrativa, Pitkin é-nos retratado como um homem comum cujos sonhos de estabelecer negócio e família o trouxeram desde a terra natal de Albuquerque – sonhos que o acumular de dívidas e constante fracasso tornaram num pesadelo vivo. Pitkin encontra-se, quando o encontramos, à beira do desespero. Como tantos outros que terminam numa situação financeira equivalente, já não podia recorrer a mais ajudas de estranhos, e ainda tinha uma família para alimentar. Suicidar-se e deixar que o dinheiro do seguro ajudem a esposa e filha a recomeçar a vida começa a parecer-lhe uma solução razoável.

Usando do devido sentido de timing dramático, a condução é interrompida por um clarão na estrada, seguido do aparecimento de um vulto humano deformado. Tal como o protagonista do conto anterior, Pitkin supõe tratar-se de um homem envergando um fato especial, talvez pertencente a uma equipa científica.

Como é natural, a estranheza começa a impôr-se aos poucos, à qual o protagonista reage com a devida incredulidade.

Pilkin já não sabia que pensar. Como leitor apaixonado de ficção científica, uma ideia que quase não ousava aceitar havia-lhe já passado pelo cérebro. E ali permanecera, aliás. Muito bem, ironisou para si. isto é um marciano e tu vais ser desintegrado, companheiro. E assim ficaste com os teus problemas resolvidos.

Não obstante o reparo sobre o absurdo da situação, o conto, sendo breve, é forçado a avançar. Estabelece-se rapidamente contacto e o ser esclarece à partida que provém de algures nas estrelas. Deixamos uma nota para o problema inerente da comunicação (o ser fala o mesmo idioma do protagonista), do qual o autor está ciente e que é assim explicado:

— Muito bem... E onde aprendeu a falar inglês? Na Universidade de Albuquerque?
— Clique... não falo inglês... compreendo e respondo... dispositivo electrónico...
(...)
—Oiça — inquiriu pouco adiante. — Esse esquema para falar a nossa língua... Como é?
—... Emissor-receptor electrónico... Nossos cientistas codificaram vossa língua... clique. Ondas sonoras constituem programa para emissão resposta.

Não sendo de modo algum uma hipótese inovadora na FC, é refrescante descobrir que Luís de Campos demonstra o devido respeito com o elevado cepticismo inerente aos leitores do género e se preocupa em amansá-lo com explicações razoáveis dentro do contexto narrativo. O mecanismo da viagem interestelar é alvo de uma abordagem semelhante:

— (...) E como se deslocam no espaço?
Clique.
— Velocidade luz. Transmissão instantânea.
O extensor direito (deve ser o termo correcto, pensou Pitkin) ergueu à altura do tablier a caixa de aspecto complicado, ao mesmo tempo que o outro indicava uma fiada de interruptores.
— Progressão-futuro... Retrocesso-passado...
— Quer dizer — completou Pitkin excitado — funciona como máquina do espaço, e máquina do tempo também?
Clique.
— Sim... máquina do tempo... nome primitivo... Descoberta segunda década... Agora aperfeiçoada...
— Ah, bem — exclamou Calvin Pitkin. E concluiu: — Evidentemente.

Para seu desprimor, o conto soçobra visivelmente a partir deste momento, pois o extraterrestre, cuja pretensão é reunir-se aos companheiros investigadores espalhados pelos EUA, ajuizou mal a capacidade do velho automóvel e a disponibilidade do condutor – ao invés de encetar viagem, o protagonista prefere levá-lo para sua casa. Aqui, trocam informações sobre o planeta de cada um, enquanto Pitkin vai, aos poucos, regressando ao estado anterior de cisma sobre a resolução do seu infortúnio, que é o mesmo que dizer, encaminhando o leitor de volta ao enredo principal do conto. Resolução essa que parece, literalmente, ter caído dos céus.

Na realidade, desde o início que a ideia de Pitkin não saíra da pequena caixa do tempo. «Progressão no futuro»... «Retrocesso no passado». Tão fácil como isso. Numa fracção de segundo. Uma viagem no tempo, a justificar uma vida inteira. E agora ele, Pitkin, sabia que podia também habilitar-se. Assim o estranho admitira. (…) Um terrestre não poderia voltar, visto que o regresso exigia uma radiação de comprimento de onda tal que só poderia ser emitida da Estação do Espaço. E nunca os conterrâneos do seu hóspede permitiriam uma inconveniência de tal ordem. (...)
— Amy... não pode ir, pois não? Nem Kathy.
Clique.
— Não... Calvinpitkin sozinho.

A solução está à vista, e é cobarde. Voltar atrás no tempo, deixar mulher e filha desamparadas mas salvar-se a si mesmo. Recomeçar a vida. Cobarde até na rejeição do suícidio, que admite não se capaz de realizar. Uma escolha irresistível para um homem desesperado.

Mas recordam-se do título da história?

«O Homem Que Não Quis Viajar»...

A esposa encontra o marido em csaa – sozinho, pois o conto desinteressa-se sumariamente do alienígena e nem sequer explica que destino terá tido. Apenas lhe interessa que o homem escolheu ficar. E como as boas acções têm de ser recompensadas antes da palavra «fim», a esposa revela trazer boas notícias: o crédito foi afinal aprovado pelo banco, dando a Pitkin a hipótese tão ansiada para sair da crise pessoal.
Depois da promessa colocada pela primeira metade do texto, este desenlace apressado, fora do contexto de Ficção Científica entretanto estabelecido, surge como desmerecedor e frustrante. No entanto, não deixa de ser invulgar, visto que não se encontrarão muitos enredos (dentro do género, ou não) em que a tentação da viagem temporal termine numa rejeição sumária.

Se efectivamente o autor detinha uma familiariade básica com o género, como demonstrado nos indícios acima apontados, é razoável supor que estivesse ciente da estranheza do final, e logo, que o tivesse escolhido precisamente pela estranheza, enquanto comentário velado aos enredos habituais do género. Mesmo se considerarmos que a escolha possa ter sido ajudada por um imperativo editorial de cumprir determinado limite de palavras (as contribuições portuguesas têm, na maioria, uma dimensão aproximada entre si), não é displiscente ler no conto um cunho de originalidade – contraproducente, sem dúvida, por ter afastado a história de uma conclusão assente nos princípios da FC, além de bastante discreto na sua formulação.

Mas basta aliarmos esta percepção a evidências de unidade temática (o problema financeiro do protagonista) e de decisão moral/emocional com desfecho inesperado – em suma, identificar alguns dos principais pilares de qualquer narrativa –, para podermos destacar o conto como uma das poucas contribuições lusitanas do livro que entende o funcionamento da narrativa curta na Ficção Científica.

(O artigo encontra-se em curso e apresenta-se em versão preliminar, sem inclusão das referências bibliográficas. Informações complementares são bem-vindas. Futuras actualizações serão feitas sobre este próprio texto.)

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12 Agosto 2012

Não Entendo A Polémica Da Crítica e o divulgado fracasso do filme John Carter, que tive oportunidade de ver recentemente (não acorri à estreia; cada vez mais a experiência do espaço de cinema para filmes comerciais implica, por um preço elevado, aturar grupos irrequietos, compatriotas mal-comportados e aqueles insuportáveis anúncios das operadoras de telemóveis com o falso ambiente feel-good e música inspiradora-mas-desinspirada para jovens que me afastaria rapidamente se ainda fosse mercado-alvo, e tudo isto sem o descanso que outrora o intervalo permitia; nada como o conforto do sofá, a nitidez do HD e o conveniente botão de pausa; eis a velhice que se aproxima a passos largos e seja bem-vinda). É o filme esperado, possível e previsível que poderia surgir do material de base. Contém tudo o que é esquecível mas, afinal, perdoável sobre a obra de Burroughs: a péssima escrita, a caracterização risível, a insensatez do enredo, a simplicidade atroz; e contém tudo aquilo que o tornou num clássico intemporal: o deslumbre por um horizonte estranho e longínquo, a sensação de aventura numa terra de fronteira em que tudo está ainda por definir, a descoberta súbita em nós de poderes inesperados que podem influenciar o mundo, a importância da nossa existência individual, o romance picante com uma princesa boazona que precisa de nós para sobreviver. Todos os mitos de crescimento dos rapazes reunidos numa única história, cheia de aventura, emoção, perigo e algum humor. Resumindo, um filme Disney, para brancos, cheio de brancos e outros tons politicamente correctos. Uma fórmula que pode cansar na era actual mas que não destoa da tradição existente. Maus desempenhos? Sim, péssimos - quer Carter quer a Thoris têm uma ausência de carisma tão notória que se torna dolorosa. Maus diálogos? Nem vale a pena falar disso. Mas live-action nunca foi o forte da Disney, e novamente o destaque vai para a componente animada. São as figuras virtuais que sustentam a personalidade do filme, em particular a presença esverdeada de William Defoe e do pseudo-caniche. São os territórios e a concepção visual do planeta e das cidades, imaculadamente composta e integrada na parte filmada. Estando à espera de um dejecto fumegante, encontrei, com agradável surpresa, um filme cheio de vida e acção, suficientemente leve e sem os laivos de pretenção literária que Nolan procurou atribuir à trilogia Batman. Por hábito, a pulp clássica não melhora quando a vestem com o fatinho ou vestido de gala da alta cultura. E o filme não segue fielmente o texto original? Ora, se alguém voltasse no tempo para dizer ao caro Edgar Rice que alterasse umas quantas coisitas na história de modo a adequar-se ao filme do século seguinte, e lhe passassem vinte dólares para a mão, é bem certo que o faria sem pestanejar. Se lhe passassem cem, iriam ver se o sacana no Carter não conseguiria pular de Marte até às luas! Nisto sempre podemos confiar nos autores pulp: como qualquer rameira de beco, estavam prontos a sacrificar a integridade profissional por meros tostões. Quanto ao filme, talvez não me interesse revê-lo e ficou pouca vontade de conhecer a sequela, mas penso que valeu a pena ter existido, nem que seja para servir como referência para o advento de melhores e mais ambiciosos artefactos - como o livro serviu no passado.

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