Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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15 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (3). «Eu Canto o Corpo Eléctrico!» (conto, bib., tradução de Eurico da Fonseca de «I Sing the Body Electric!»), de Ray Bradbury. Em: A Última Cidade de Marte. Lido em inglês e português.

Um pai procura colmatar a morte prematura da esposa para os filhos pela oferta de um brinquedo novo: uma avó eléctrica! Conduzidos à cidade, entrando na loja de um italiano fabricante de marionetas (porque só se consideram como legítimos os fabricantes de marionetas que sejam italianos?), os miúdos têm de responder a perguntas e deixar provas das suas lembranças, numa sugestão de produto personalizado. E eis que passado o tempo suficiente (tudo funciona com ritmo e espaçamento perfeitamente ajustados às necessidades das crianças, neste mundo que só pode ser de fantasia), chega de helicóptero à casa rural a nova prenda, dentro de um pseudo-sarcófago, que se acciona por intermédio de uma chave, dada à mais pequenita pelo empregado da loja. A avó eléctrica é tudo e mais do que se espera, um andróide perfeitamente funcional que ajusta as feições e reacções a cada criança e nunca se intromete nas suas convicções nem contraria os seus desejos, procurando atraí-las e conduzi-las através do constante esforço de seduzir e agradar (é de ponderar se tal personagem assim subtraída às vontades infantis não acabaria por criar um bando de fedelhos mimados?). A avó eléctrica tem as respostas para tudo, e muito articuladas e filosóficas que são, um perfeito exemplo de inteligência artificial em movimento – como teria um fabricante de brinquedos atingido tal competência cibernética e porque motivos continuaria a fabricar brinquedos, ao invés de se tornar o primeiro multimilionário da indústria robótica, é algo que não chega sequer a ser questionado; talvez se explique no facto de ser italiano?...

Bem, e a avó eléctrica fala pelos cotovelos, dando lições filosóficas sobre a natureza das máquinas e da tecnologia. O que não deixa de ser interessante. Até ao ponto de, quando as crianças ficam suficientemente crescidas, ela anunciar que vai retornar à loja (então não tinha sido comprada? Veio em regime de aluguer? Isso não nos tinha sido dito) e submeter-se às vontades do fabricante: ir para uma nova casa, ser desmontada para se aproveitarem as peças, etc. O que perturba os putos, naturalmente. Eis que, num elegante volte-face de salvação, a avó anuncia que, por uma módica prestação mensal, será remetida a um lar onde passará os anos a conversar com as outras avós eléctricas até ao momento em que os miúdos, já crescidos, precisem dela para os próprios filhos, ou, quando velhotes e regressados a uma débil infantilidade, requeiram os seus serviços de assistente, presumivelmente para mudar arrastadeiras ou esfregar no banho as peles caídas...

Sim, é complicado aceitar um mundo em que tal proposta não fosse respondida com uma gargalhada jocosa, passados os cinco segundos de reflexão financeira. Mas no sonhador mundo de Bradbury ninguém sabe fazer contas...

Não é que se trate de um conto lamechas. O autor tem a devida competência como prosador para salvar cada cena individualmente de se tornar ridícula. Infelizmente, o nível de ingenuidade que despeja sobre o cenário e as personagens acaba por transbordar para além da reduzida margem concedida por um qualquer leitor que pertença ao mundo real e entenda como funcionam as pessoas – sejam crianças ou adultos – e o progresso – que não inventa a inteligência artificial para o bem-estar das famílias sem antes a aplicar, de forma ubíqua e exaustiva, nos principais processos industriais e militares.

Pode haver um nível de encantamento no mundo de Bradbury mas é maior o nível de perigo – pois tamanha ingenuidade é capaz de cegar multidões, dando lugar e poder àquele com o proverbial olho aberto... Dêem-me a escolher e entrarei no mundo atento e desconfiado dez vezes em cada dez.

(Quanto à tradução, opinarei em foro próprio, deixando apenas uma nota de que seria, a meu ver, mais apropriado indicar «Louvo o corpo eléctrico!» como versão portuguesa do título, uma vez que se trata, afinal, de uma citação de Whitman; a edição posterior da Europa-América conseguiu ser ainda apresentar-se mais afastada do sentido e da poética do verso...)

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14 Janeiro 2014

Outras Leituras (1). Crítica publicada no Caderno Literário InDica, n.º 0, 2013.

«Havia em mim um impulso incendiário, uma voracidade para engolir tudo, uma incapacidade para a paz, para o silêncio e para os dias comuns», confessa-nos em jeito de promessa a abertura de Enquanto Lisboa Arde, o Rio de Janeiro Pega Fogo, terceiro romance do jornalista português Hugo Gonçalves. Quem fala é o protagonista: assessor político desempregado que (europeu em tempos de crise) aceitou trabalhar com gente de má fé e que (romântico com tendências literárias) aceitou os avanços da mulher do chefe. Resultado? A inevitável fuga para o Rio de Janeiro.

Traz o Homem dentro de si as sementes da sua destruição? Esta parece ser a crença da estória: não tarda até que o protagonista se perca numa bruma de maconha e mulheres, de amigos ambíguos e missões duvidosas. Ainda que seja no Rio, e muito especificamente, na geografia, nos sons e cores da Cidade Maravilhosa, que se encontra, a si mesmo e a Margot, paixão consumida de carne e alma que faz tanger as cordas da prosa como se fosse violão de rua. É no estilo – vibrante, alucinado, incansável, veloz – que está a grande força do romance. Gonçalves leu os autores do século XX, tece uma prosa que sabe, ora a poesia ora a delírio.

Mas é também um livro de enganos, pois apresenta-se como um relato pessoal do fim do mundo. Este mundo é o Portugal moderno, composto e vestido pelos fundos europeus que, durante quase duas décadas, sustentaram o estilo de vida das gerações saídas do 25 de Abril. Portugal amordaçado pelo défice, pela austeridade e pelo desemprego das classes educadas que esperavam passar incólumes; forçado a emigrar, como a geração iletrada dos anos 60, mas tão diferente desta.

A diáspora, vista pelo marketing da editora, é outra: conta Gonçalves nas entrevistas que, embora com planos de partir para o Brasil, foi despedido do jornal em que trabalhava e chegou à terra prometida com a precariedade de tantos outros compatriotas. O relato pessoal em breve se torna fantasia, ao envolver o rol quase mandatório de figuras da recente memória portuguesa (temos o ex-PIDE, o ex-refugiado do Holocausto, o sobrevivente de Abril, o filho do papá rico), verdadeiro mostruário de defeitos sociais, como se o Rio fosse, ao mesmo tempo, foz e âmbar cristalizado dos últimos quarenta anos de História de Portugal. A reflexão que prometia ser profunda, inovadora e desconcertante, limita-se a repetir os mesmos argumentos dos média e dos cafés, embora com ocasional ironia. E até o romance é interrompido por frequentes notas de rodapé em estilo jornalístico, explicando pormenores da vida e História brasileiras ao leitor luso, como se incerto da sua verdadeira natureza.

No final, representa menos o mergulho de um expatriado na estranheza de outra cultura, outro clima e outra forma de falar a mesma língua, e mais a sua passagem pelos contornos da superficie, com a mandatória visita ao Leblon e à favela, ícones sociais que aparentemente é impossivel desassociar da ideia do Rio de Janeiro. O autor não é ingénuo a ponto de crer em explicações fáceis, pelo que coloca vários personagens locais a alertar-nos que nem tudo o que se pensa da cidade reflete o que realmente é. Contudo, não deixam de ser conversas alheias, entrevistas, e deixa a sensação de um livro que podia ter sido um mergulho mas fica-se pelo surf.

Ainda assim, um surf de mestre. Recomendado.

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