Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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16 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (4). «Young Zaphod Plays it Safe» (conto) de Douglas Adams. Em The Time Traveller's Almanac. Lido em inglês.

Eis um regresso muito apetecido ao universo de À Boleia pela Galáxia (privilegiando a tradução de António Vilaça na recente edição da Saída de Emergência), em que nos deparamos com uma incursão do Presidente galáctico Zaphod Beeblebrox enquanto ainda era um mero e reles colector de salvados de naves espaciais encalhadas. Acontece que a nave deste conto encalhou no fundo do oceano de um planeta famoso pelas suas lagostas, tão famoso que o piloto, descendente de antepassados provenientes daquela zona, não descansou enquanto não convenceu os camaradas a pousar e provar aqueles belos espécimes de quem tanto se falava – e falava e falava – na família... sem pensar na importância da sua missão, que consistia em despachar a nave contra um buraco negro pelo perigo e secretismo das armas a bordo... seriam umas senhoras lagostas, de facto!

Zaphod é contratado por burocratas que conhecem o verdadeiro conteúdo da nave (oficialmente transportaria «resíduos inofensivos»), os quais insistem em como foram seguidos todos os protocolos e normas de segurança, embora as evidências da nave encalhada – o casco destruído, o convés despedaçado – apontem para o contrário.

Aqui se percebe como o humor de Adams é de uma maestria subtil e destemida, sustentada no uso cuidado da linguagem e na delicadeza como apresenta a ideia, fazendo-nos envolver aos poucos, sem pressas, como se abrisse aos poucos um diafragma ocular sobre uma realidade complexa e desconcertante. À moda dos verdadeiros humoristas da palavra, evita a punch line e esforça-se por explicar o absurdo no contexto narrativo. Aliás, é precisamente por nunca pedir desculpas e insistir no elemento apresentado que consegue obter situações hilariantes, disfarçadas de enredo. Algo que traz bons resultados em meios verbais, como a rádio, mas que se transforma em desastre no cinema e na televisão – conforme já se pode comprovar.

Apetece fazer excertos do conto inteiro. Fica, contudo, aqui um dos mais cativantes, sobre a invenção das «varetas do aoristo» e de como toda a tecnologia tem efeitos secundários (hint, hint, nudge, nudge) perfeitamente plausíveis e humanos:

Aorist rods were devices used in a now happily abandoned form of energy production. When the hunt for new sources of energy had at one point got particularly frantic, one bright young chap suddenly spotted that one place which had never used up all its available energy was – the past. And with the sudden rush of blood to the head that such insights tend to induce, he invented a way of mining it that very same night, and within a year huge tracts of the past were being drained of all their energy and simply wasting away. [...] The past provided a very cheap, plentiful, and clean source of energy, there could always be a few Natural Past Reserves set up if anyone wanted to pay for their upkeep [...] It was only when it was realised that the present really was being impoverished, and that the reason for it was that those selfish plundering wastrel bastards up in the future were doing exactly the same thing, that everyone realised that every single aorist rod, and the terrible secret of how they were made, would have to be utterly and forever destroyed.

 

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15 Janeiro 2014

Leituras de 2014 (3). «Eu Canto o Corpo Eléctrico!» (conto, bib., tradução de Eurico da Fonseca de «I Sing the Body Electric!»), de Ray Bradbury. Em: A Última Cidade de Marte. Lido em inglês e português.

Um pai procura colmatar a morte prematura da esposa para os filhos pela oferta de um brinquedo novo: uma avó eléctrica! Conduzidos à cidade, entrando na loja de um italiano fabricante de marionetas (porque só se consideram como legítimos os fabricantes de marionetas que sejam italianos?), os miúdos têm de responder a perguntas e deixar provas das suas lembranças, numa sugestão de produto personalizado. E eis que passado o tempo suficiente (tudo funciona com ritmo e espaçamento perfeitamente ajustados às necessidades das crianças, neste mundo que só pode ser de fantasia), chega de helicóptero à casa rural a nova prenda, dentro de um pseudo-sarcófago, que se acciona por intermédio de uma chave, dada à mais pequenita pelo empregado da loja. A avó eléctrica é tudo e mais do que se espera, um andróide perfeitamente funcional que ajusta as feições e reacções a cada criança e nunca se intromete nas suas convicções nem contraria os seus desejos, procurando atraí-las e conduzi-las através do constante esforço de seduzir e agradar (é de ponderar se tal personagem assim subtraída às vontades infantis não acabaria por criar um bando de fedelhos mimados?). A avó eléctrica tem as respostas para tudo, e muito articuladas e filosóficas que são, um perfeito exemplo de inteligência artificial em movimento – como teria um fabricante de brinquedos atingido tal competência cibernética e porque motivos continuaria a fabricar brinquedos, ao invés de se tornar o primeiro multimilionário da indústria robótica, é algo que não chega sequer a ser questionado; talvez se explique no facto de ser italiano?...

Bem, e a avó eléctrica fala pelos cotovelos, dando lições filosóficas sobre a natureza das máquinas e da tecnologia. O que não deixa de ser interessante. Até ao ponto de, quando as crianças ficam suficientemente crescidas, ela anunciar que vai retornar à loja (então não tinha sido comprada? Veio em regime de aluguer? Isso não nos tinha sido dito) e submeter-se às vontades do fabricante: ir para uma nova casa, ser desmontada para se aproveitarem as peças, etc. O que perturba os putos, naturalmente. Eis que, num elegante volte-face de salvação, a avó anuncia que, por uma módica prestação mensal, será remetida a um lar onde passará os anos a conversar com as outras avós eléctricas até ao momento em que os miúdos, já crescidos, precisem dela para os próprios filhos, ou, quando velhotes e regressados a uma débil infantilidade, requeiram os seus serviços de assistente, presumivelmente para mudar arrastadeiras ou esfregar no banho as peles caídas...

Sim, é complicado aceitar um mundo em que tal proposta não fosse respondida com uma gargalhada jocosa, passados os cinco segundos de reflexão financeira. Mas no sonhador mundo de Bradbury ninguém sabe fazer contas...

Não é que se trate de um conto lamechas. O autor tem a devida competência como prosador para salvar cada cena individualmente de se tornar ridícula. Infelizmente, o nível de ingenuidade que despeja sobre o cenário e as personagens acaba por transbordar para além da reduzida margem concedida por um qualquer leitor que pertença ao mundo real e entenda como funcionam as pessoas – sejam crianças ou adultos – e o progresso – que não inventa a inteligência artificial para o bem-estar das famílias sem antes a aplicar, de forma ubíqua e exaustiva, nos principais processos industriais e militares.

Pode haver um nível de encantamento no mundo de Bradbury mas é maior o nível de perigo – pois tamanha ingenuidade é capaz de cegar multidões, dando lugar e poder àquele com o proverbial olho aberto... Dêem-me a escolher e entrarei no mundo atento e desconfiado dez vezes em cada dez.

(Quanto à tradução, opinarei em foro próprio, deixando apenas uma nota de que seria, a meu ver, mais apropriado indicar «Louvo o corpo eléctrico!» como versão portuguesa do título, uma vez que se trata, afinal, de uma citação de Whitman; a edição posterior da Europa-América conseguiu ser ainda apresentar-se mais afastada do sentido e da poética do verso...)

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