Conceito de Luís Filipe Silva

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Conto

 

O Lugar Para Onde Vão as Coisas que Desaparecem

 

Jorge Candeias

 

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O lugar para onde vão as coisas que desaparecem é um sítio curioso. Está cheio de berlindes e de caricas, semeados por toda a parte. Há árvores de chapéu em cada esquina e caniçais de chapéu de chuva ao longo de todos os rios. Há prados inteiros cheios de flores de paciência, que crescem entre tufos de ervas de calma, e neles voltejam os pássaros do amor à caça de insectos. As cidades estão cheias de vida e de paz e de tempo. E também há lá muitas coisas-que-são-precisas-neste-momento, de muitas formas e feitios.

É também um lugar cheio de juventude. E de sonhos, ilusões, desejos e paixões.

Sei disto porque estive lá, uma vez. Sou daqueles homens que não se contentam com a vida de todos os dias, com a realidade palpavelmente real que esconde as suas rugas e inconsistências por detrás de máscaras. Desde que me conheço, sempre procurei essas rugas, ou pelo menos desde que pela primeira vez compreendi que não estava ninguém dentro do rádio, e que aqueles sons que dele saíam eram criados pela electricidade. Bem me tentaram explicar como isso era feito, mas sem resultado. Nunca compreendi. Ou por outra, nunca aceitei a explicação como verdadeira e em vez disso sabia que havia ali um mistério qualquer, uma ruga de realidade, uma máscara.

Mais tarde, bebi muito, fumei haxixe, ingeri outras coisas mais interessantes e perigosas, sempre na busca das falhas, dos atalhos, da realidade verdadeira que se esconde por detrás da realidade de todos os dias. Foi de uma dessas vezes que encontrei o lugar para onde vão as coisas que desaparecem.

Não sei se me compreendem, mas é que o lugar não tem só coisas, também há lá pessoas. Multidões passeiam-se à noite pelas alamedas de ideias luminosas, sorrisos contemplativos estampadas nos rostos. Outras multidões (ou talvez as mesmas, não sei bem) circulam de dia, apressadas, por campos de suspiros. São as pessoas que desapareceram e nunca mais ninguém viu. Exploradores, meninos perdidos, velhos conhecidos, antigas namoradas e velhos, muitos velhos.

E uma mão-cheia de descrentes da realidade, como eu.

Caí no lugar para onde vão as coisas que desaparecem quase sem dar por isso. Estava em casa, a olhar para a parede, como sempre em busca de qualquer coisa que eu sabia que estava lá mas que não se via. Lembro-me que fechei os olhos e, quando os abri, logo depois, estava uma árvore de chapéus na minha frente, grande, lustrosa nas suas folhas de napa, carregadinha de chapéus de todos os tipos, pendurados de ramos de fruto em forma de cabide. Quando a vi, julguei que era uma alucinação provocada pelo que tinha tomado. Tenho vergonha de admiti-lo mas, apesar de tudo, mantinha na altura algum cepticismo, talvez criado por anos de tentativas pouco frutíferas de desconstruir o que se nos afigura real. Por isso, quando finalmente tive sucesso, o primeiro pensamento que tive foi aquela banalidade sem sentido da alucinação.

Mas depois vi a minha avó, que já não via desde os três anos. Reconheci-a logo. Estava igualzinha ao que era quando desapareceu da minha vida: cabelos ainda quase negros, poucas rugas na cara, um sorriso carinhoso mas vagamente inflexível, um resto de bifana na mão e um jornal debaixo do braço. Rodeava-a um bando de crianças, que olhavam para mim, envergonhadas, e de vez em quando estendiam a mão timidamente para a minha avó, que então lhes dava uma migalha de bifana que elas levavam à boca, olhando-me com ar pensativo.

Tive vontade de voltar a sentar-me no seu colo e perguntar-lhe o significado das letras gordas do jornal, enquanto ganhava bocadinhos de bifana, como o bando de miúdos.

Eram minhas aquelas pegadas.

Foi nessa altura que percebi que tudo aquilo existia mesmo, e que eu tinha finalmente descoberto um lugar real fora da realidade, onde se encontravam todas as coisas que dela se tinham perdido.

Passei horas ali. A minha avó sacudiu os miúdos com relutância e resignou-se a responder às minhas perguntas. Não sei bem se me reconheceu. Afinal de contas, tinham-se passado mais de trinta anos, e eu há muito que tinha deixado de ser um miúdo de cara bolachuda e óculos grossos. Suponho que tenha ficado um pouco perplexa com a minha perturbação e tenha sido levada pela curiosidade, não sei.

O que sei é que falámos durante muito tempo. Fiquei a saber que ela tem uma vida satisfeita, com as suas crianças, e que por causa disso conhece muita gente. Disse-me que as crianças são importantes no lugar para onde vão as coisas que desaparecem, porque há poucas. A minha avó passeia muito com elas, distribuindo migalhas de bifana à esquerda e à direita e rindo, rindo muito.

Falámos também das outras pessoas que vivem naquele lugar. Quis perguntar-lhe sobre o meu avô, que nunca conheci, mas não tive coragem. Em vez disso, deixei-a falar. Contou-me episódios de ricos e pobres. Explicou-me segredos de anónimos e famosos. Levou-me nas teias da conversa a conhecer a geografia daquela terra, as coisas que nela crescem, os lugares onde as coisas que desaparecem da minha terra aparecem naquela.
Pareceu-me uma mulher feliz, e fui sorrindo ao ouvi-la. Mas cometi o erro de dizer-lhe isso mesmo quando já nos tínhamos despedido e eu me preparava para tentar encontrar o caminho de volta à minha realidade. Ela então baixou a cabeça, ficou imóvel um momento, e depois olhou para o horizonte enquanto dizia:

- Sim, seria feliz se não tivesse um dia encontrado o velho Einstein. Ia andando pela rua, gesticulando e soltando exclamações, como uma barata tonta. Eu e a minha grande boca resolvemos perguntar-lhe se se sentia bem. Olhou para mim como se não me visse, mas parou e por isso repeti a pergunta. A resposta que ele me deu ficou-me atravessada no contentamento, e não me deixa ser feliz. Olhou para mim, muito sério, os olhos brilhantes, e disse: «Sim, cara senhora, sinto-me bem. Mas estou preocupado. Tenho medo de desaparecer. Já a senhora pensou para onde vão as coisas que desaparecem deste lugar onde estão as coisas que desaparecem?»

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Autor:
Jorge Candeias