Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

 

Os Braços em Torno de Mim

A Idade da Razão: Lendas (1)

 

 

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Viria a falecer aos oito, trinta, cento e setenta e trezentos e vinte anos, em locais distantes e de maneiras distintas, tantas quantas as suas anteriores vidas, mas nascera num único lugar, nas cavernas de Titã, no perímetro da esfera interior da Razão, no planetóide outrora cativo do gigante gasoso entretanto desmantelado. Ali abrira os olhos pela primeira e restantes vezes, e mexera os dedos e andara sobre as tantas pernas, experimentando-as uma a uma, e mantivera as primeiras conversas consigo, aprendendo de si mesma, da parte de si que tinha nascido primeiro, quem era e onde estava. Acompanhou o crescimento dos seus vários troncos, das formas masculinas e femininas, quando humanas, lavou-os e ungiu-os para mantê-los brilhantes e saudáveis, e usou-os pela primeira vez, tal como viria a usar as formas animais e se incorporaria no mecanismo espalhado pelo planeta, nos telescópios e defesas armadas. Quando se sentiu pronta para sair do ninho, estava a meio do nascimento, mas não podia esperar para se conhecer na totalidade.

O que não tornou a etapa seguinte mais fácil, pois se o isolamento das partes ajudava a definir limites na rotina diária, quando no tempo do sonho recebia as memórias de si mesma que estava distante sentia-se alternadamente imensa e universal, ou dispersa e desconhecida. Porque se estava longe e cobria territórios mais vastos que a maioria dos outros seres, enfrentava também o receio da autonomia, de perder o rumo - embora a noção de rumo fosse vaga e se confundisse com a noção do espaço fechado, recluso de Titã, onde tudo era conhecido e catalogado. O receio não diminuía quando a sua fronteira se misturava com a fronteira de outros seres, alguns individuais e outros iguais a ela, múltiplos, e nascia a estranha simbiose de experiências partilhadas mas distintas. Que não houvesse uma autorização prévia foi chocante ao início, mas entendeu que ter de autorizar era uma ideia ainda mais aberrante, e realmente ineficiente. E algumas parcerias davam-lhe prazer, pois ia mais longe e voava mais rápido, tornava-se em quem não era, sentia o vento solar e a gentil pressão dos planetas guiar o seu imenso corpo de cruzeiro entre órbitas. Pelo que decidiu que poderia dar um voto de confiança. Mesmo quando as parcerias lhe começaram a trazer desgostos, objectivos que não eram cumpridos, riquezas que se desperdiçavam, e até a morte, uma vez.

"É uma questão de identidade", disse a conselheira pessoal de uma das suas formas humanas, "onde começamos e acabamos. O espelho tem de ter tamanho suficiente para nos vermos como um todo", e aquilo adequava-se tão bem à sua condição que decidiu procurar esse espelho. Que a conselheira não conhecesse toda a realidade da sua pessoa fez com que ficasse obcecada por ela, não percebendo que o conselho se destinava a um plano de entendimento mais banal; sentia-se compreendida, aceite: voltou a procurar aquela pessoa inúmeras vezes, na cama enquanto homem e amante, ou no dia-a-dia incorporada na tecnologia pessoal que ela usava, ou até no seu prato, como comida, como átomos que iriam fazer parte daquele corpo até ao fim da existência.

Encontrou a felicidade no controlo das trajectórias de aproximação dos cargueiros espaciais autónomos que traziam água e carbono roubados aos cometas durante a trajectória; o amor nas simulações de ecosfera que os sistemas de controlo planetário utilizavam para instalar e melhorar as condições das novas espécies em ambientes primevos. Ela estava em todo o lado, era parte de um todo imenso. Deixou de temer os pesadelos e aceitou a morte como aceitou o nascimento, apenas histórias que cediam o lugar a outras.

E um dia chegou em que uma parte de si foi escolhida para acompanhar uma missão para fora do Espaço Habitado, da qual não previa retornar. Viu a Razão diminuir atrás de si, e todas as suas partes acompanharam a viagem, até o sinal se tornar difuso. Ao que compreendeu, e compreendendo contou a todas as suas partes: que estava ali, o seu todo, dentro da esfera, representante e observadora da vida e história daquela região, tão imensa e também tão pequena face ao universo - o seu espelho. Ao afastar-se, conseguiu ver-se. E encontrou quem sempre tinha procurado: si mesma.

Um dia, sabia, todas as suas partes voltariam a encontrar-se, regressaria a casa. As histórias iriam juntar-se numa única experiência, interpretada e lida, para descobrir o capítulo seguinte, em quem ou no que deveria tornar-se a seguir. Não iria ser fácil, mas já não temia o momento - mesmo que tivesse de abandonar o conforto da infância. Mesmo que tivesse de parar de nascer.

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