Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

 

O Amor do Jardineiro

A Idade da Razão: Lendas (2)

 

 

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Esta é a história de Jazzedk, jardineiro da plantação das almas num continente do hemisfério norte do planeta Terra, e da sua paixão por aquela a que chamou Princesa, a flor mais bela do seu jardim. Aconteceu pouco antes da aniquilação ecosférica pelos vandenbrook, quando a Terra era ainda habitável pela nossa espécie e havia jardins de gestação que cobriam pradarias até perder de vista.

Jazzedk era jardineiro por orientação e destino desde que saíra da vagem. Tinha mãos cuidadosas que se preocupavam em orientar a rega para chegar a todo o jardim; dedos finos que chegavam aos lugares recônditos das folhas e as limpavam meticulosamente; olhos atentos às pragas e aos predadores; braços fortes para amparar as almas e cortar os caules no processo de libertação; passos vagarosos que percorriam o perímetro da plantação vez sem conta por não precisarem de ir a parte nenhuma; olhos calmos e pachorrentos que não se importavam de ver o mesmo cenário, dia após dia, ano após ano, década após década, século após século. Jazzedk nascera para cuidar das plantas e não conhecer mais nada, nem desejar conhecer mais nada. Naquela época as pessoas eram desenhadas para serem felizes na função para que tinham nascido. Os vandenbrook acabariam depois com tudo, mas essa não é a nossa história. Não totalmente.

Cuidar de um jardim requeria um cuidado constante. As colheitas sucediam-se consoante as plantações, e se num hectare as vagens estavam ainda pequenas, fechadas, com as pequenas formas a pressionar contra a membrana verde, em outras parcelas as almas crescidas abriam os braços ao sol, os longos cabelos esvoaçavam ao vento, as bocas cantavam pelos cantos semi-abertos, os narizes retorciam-se contra a membrana da gestação. Era preciso garantir-lhes alimento, controlar a renovação do terreno e os fluxos de água. Protegê-las do calor excessivo. Impedir que se magoassem mutuamente quando acordavam. Cortar-lhes os cabelos para que os corvos não os puxassem. Era trabalho duro e constante, mas era acima de tudo o grande amor de Jazzedk.

Em retribuição as plantas faziam-lhe companhia, verdadeiros filhos em todo o conceito. As plantas falavam com ele, conheciam-lhe o nome - o que era uma honra vindo de memórias tão limitadas. Os braços estendiam-se num cumprimento, dançavam com ele ao sabor do vento, movimentos vagarosos e suaves, próprios dos seres vegetais; por vezes beijava a pele, a mão, os olhos, os lábios enrugados e secos, que sabiam a seiva doce. Mesmo as almas que tinham nascido iradas, vítimas do terreno ou do alimento ou de factores desconhecidos, que o olhavam com dor e raiva, e que lhe perguntavam quando sairiam dali, almas que queriam ter asas, mesmo quando o culpavam injustamente, ainda assim falavam com ele.

Mas não a Princesa.

Não lhe dava outro nome. Era incorrecto nomear uma alma sem o consentimento desta, e como ela nunca lhe dirigira palavra, mantivera para si a designação. Mais correcta, aliás, que qualquer nome de planta. Desde o início que se destacava como a flor mais bonita do jardim. O caule forte e de um verde profundo, erguendo-se firme sem se abater pelo peso. As folhas rijas e raiadas de veias profundas, que lhe davam um ar exótico. A abertura tinha-se dado delicadamente no decorrer da Primavera. A pequena cabeça surgiu de dentro, a figura delicada, erguida. Um verde pálido, quase branco. O nariz pequeno e fechado. A boca pequena e de lábios finos, quase um traço imperceptível. Pequena, delicada, mas cheia de vigor. Cheia de promessa. Uma Princesa.

Fazendo jus de tal realeza, não dirigiu palavra ao jardineiro. Mesmo quando abriu os olhos e as pupilas cor de ervilha começaram a banhar-se na luminosidade do dia, não procurou a presença dele. Os braços finos abriram-se mas apenas para se alimentar melhor na luz do sol. O olhar era ausente. O peito de lolita manteve-se inalterado ante as mãos dele. Jazzedk tocou-lhe uma vez e não mais, por pudor.

Mas Jazzedk tentou falar-lhe muitas vezes. E não tendo resposta calou-se, por algum tempo, magoado. Falou então dela com os outros, para entender. O silêncio magoava-o, procurava-o na noite, ficava acordado encostado aos troncos das árvores que em outra ocasião lhe proporcionariam abrigo, perto dela, olhando para a figura pálida e imóvel. Pela primeira vez, não conseguia descansar, e não entendia porquê. Mas os olhos, que tentava fechar, acabavam por se fixar nas linhas da figura esquálida apertada entre as folhas, branca ao luar - naquele tempo, ainda a Lua dava voltas em torno da Terra. A olhar para ela, destacada na primeira fileira, o rosto de pedra.

Não veria ela a dor dele?

No entanto, acabou por descobrir que a Princesa não falava com ninguém. Talvez fosse autista. O que era pior para si. Por vezes nasciam assim, e ele tinha de os ceifar enquanto eram pequenos, para não sofrerem e influenciar os outros. Se ela o fosse… Não podia fazê-lo. Não seria capaz.

E por fim decidiu falar com ela, mesmo não obtendo resposta. Contou-lhe da sua vida e do que ia acontecendo no resto da plantação. Contou-lhe do pouco do mundo que conhecia e do que falava com as outras plantas. Sentiu-se bem com esta decisão. Sabia que um dia teria resposta. De que forma fosse. A Princesa cresceu, ficou mais forte, começou a desenvolver pernas que um dia teriam de andar. Que a levariam para longe dele.

E no mês das primeiras chuvas surgiram os vandenbrook.

Jazzedk acordou numa noite escura, em que não havia Lua e as nuvens cobriam as estrelas, ao som de gritos de desespero. O som, distante, provinha da orla da plantação, e imediatamente percebeu que eram plantas a gritar. Subiu ao monte de vigia, de onde conseguia abarcar todo o território. Havia uma luminosidade estranha no horizonte, da cor das laranjas, um brilho fétido. Jazzedk pegou nas ferramentas e desatou a correr.

A maioria das plantas dormia ainda, mas à medida que se aproximava, e o som ficava mais estridente, algumas almas tinham despertado da letargia nocturna e entreolhavam-se em silêncio, as suas pequenas mentes incapazes de completar a dúvida. Algo de muito, muito preocupante estava a acontecer.

De súbito, viu aparecer uma mancha no céu, ainda mais negra que as nuvens, um ruído sibilante, um olho que iluminava à distância, e Jazzedk parou. O veículo passou lânguido sobre a plantação, lançando breves descargas de material incandescente.

À sua frente, as plantas começaram a arder.

Na dor, berravam, agitavam os braços, como se quisessem voar mas estavam presas à terra, mais ágeis do que Jazzedk alguma vez as vira. Recortadas contra as chamas que subiam bem alto pois alimentavam-se dos seus corpos, era um cenário horrível, e não havia nada que ele pudesse fazer. Não comandava as chuvas. Não estava preparado. Não, para um desastre desta magnitude.

O veículo voltou. E atrás dele seguiam dezenas.

E Jazzedk fugiu. Fugiu da plantação amada que não conseguiria salvar. Das vozes que lhe pediam ajuda e não conseguiria salvar. Mas não de tudo. Não fugiria dela.

Ela mantinha-se serena e impávida, como se todos os males do mundo lhe passassem ao lado. Contou-lhe o que vira.

"Não te posso salvar", balbuciou Jazzedk. "Não te posso salvar. Não sei o que fazer. Não te posso salvar. Se ao menos falasses comigo. Não sei o que fazer…" E continuou nesta lengalenga, pois Jazzedk nunca tinha chorado nem sabia o que era.

"Corta-me o caule."

A vozinha veio do nada, e por instantes Jazzedk pensou que a tinha imaginado. Mas a Princesa estava a olhar para ele. Esperou que ela repetisse, mas não o fez.

"Não posso", disse-lhe. "Não estás ainda pronta. Não vou ter tempo de replantar. Vais… vais morrer." "Mas não aqui." Os lábios mal se mexeram. Os olhos tinham toda a paz do mundo.

"Não posso, não posso…" Perdido na frustração, de cabeça encostada ao corpo dela, sentiu a pequena mão tocar-lhe no cabelo. Como se não houvesse problema. Um gesto de realeza tão forte que estranhamente o acalmou, e encontrou forças para ir buscar o machado e desferir o profundo golpe que a fez abafar um grito e segurar-se a ele, e ele apanhou-a na queda, os pés húmidos da seiva que escorria da ferida aberta, os gritos de pânico das plantas que se apercebiam da situação, as mãos estendidas para ele, ao correr pelos trilhos, levando-a tão rapidamente quanto podia, ela que respirava agora, forçada a um nascimento precoce, a cabeça deitada para trás.

Levou-a para fora da plantação, em direcção a lugares onde nunca tinha estado. Passou a montanha que os rodeava. Em torno do lago do outro lado, que não conhecia, e que tinha as águas imóveis. Toda a noite correu, a Princesa nos braços, a forma tão leve e tão pesada. Não voltaram a falar.

E quando a manhã surgia já no horizonte, um ruído sibilante fê-lo parar finalmente e olhar para trás, e por cima dele passaram os veículos da morte, dezenas de insectos de metal que voaram rapidamente para longe, e ele percebeu que tinham acabado o trabalho.

Ela já não se movia. A pele definhava, seca, e o verde outrora orgulhoso amarelecera, como as folhas velhas no Outono. Da ferida caíam pingos esporádicos, sem sentido. A Princesa esgotara-se aos poucos, e aquilo que restava nos braços de Jazzedk não era mais que uma casca onde costumava residir.

Conta-se que Jazzedk continuou a caminhar durante dias, à procura do lugar que lhe parecesse ideal, digno do descanso do seu amor. Atravessou o deserto da planície, em direcção às montanhas e ao desfiladeiro que se avistava ao longe. Acabou por soçobrar à entrada deste, junto ao rio que emergia da fenda escura. Na margem, plantou-a, finalmente, e deitou-se ao seu lado, conta-se, à espera do nascer de um novo caule, à espera da nova flor que a traria de volta.

Ninguém sabe o que lhe aconteceu depois, mas há quem diga que acabou por definhar de cansaço ao lado dela, sem nunca ver o desejo realizado. Há quem também diga que se matou por vontade, para providenciar adubo a um terreno fraco. Não há nada que um jardineiro não faça pelas suas plantas.

Se a história é verdadeira, ninguém confirma. Mas ainda hoje existe uma floresta selvagem no continente do sul que se estende pela pradaria em linha recta, como se fosse um caminho, lugar inóspito a exploradores mas rico em espécies invulgares e muito propício à vida. Diz-se que a floresta existe no caminho que Jazzedk traçou, originada da seiva da alma que morria nos braços, e por isso, pela lembrança do que aconteceu, é que a floresta é tão agressiva a forasteiros. Divide em duas zonas, para todos os efeitos, a planície, pois vai terminar num lugar de vegetação abundante, à entrada de um desfiladeiro, de árvores altíssimas e troncos massivos que trepam pela encosta rochosa da montanha, tão frondosas que abrigam dentro de si comunidades inteiras de espécies animais. Diz-se que, algures na protecção dos ramos, crescem duas plantas, lado a lado, uma com a forma delicada de uma rapariga humana, outra de aspecto rude e forte como um urso.

Ainda hoje chamam-se a esse local nas margens do rio o Amor do Jardineiro.

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