Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

 

Atravessar a Fronteira

 

Bruce Holland Rogers

 

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Nota preambular: Eis um conto para o dia do Armistício. O hábito de usar papoilas em homenagem aos mortos de guerra começou com o poema "Nos Campos da Flandres", do oficial médico canadiano John McCrae. No poema, os mortos pedem aos sobreviventes que honrem a memória do sacrifício que fizeram e prossigam a sua causa.

Se a nossa fé trairdes,
Jamais dormiremos, ainda que cresçam papoilas
Nos campos da Flandres.

A poetisa americana Moira Michael escreveu um poema em resposta, jurando honrar a vontade dos mortos de guerra e recordá-las através de uma papoila vermelha. Em França, a secretária do YMCA, Madame Guèrin, inaugurou a tradição de vender papoilas de seda para ajudar os veteranos necessitados.

A tradição persiste no Canadá, embora nunca tenha visto um americano com uma papoila vermelha ao peito no dia 11 de Novembro.

--oOo--

Já não reconheço este país, a terra onde nasci. Os contornos da nação continuam os mesmos. Posso comprar o que sempre comprei nas lojas. Contudo, o tempo mudou. No último Inverno não houve neve, mas o vento levantou cartas de amor a soldados mortos, em amontoados a dar pelo joelho.

Quando atravessei a fronteira para norte, não vinha a pensar em contrabando. Conduzi pelas montanhas como qualquer turista em busca apenas de descanso. Nos campos nevados das serras, avistei sombras azuis. Essa cor especial tem um nome, desconhecido no meu lado da fronteira.

O guarda fronteiriço rondou o carro, revistando-o com um espelho numa haste. Fez-me a abrir o porta-bagagem. Um cão farejou os estofos. - Tire os sapatos - mandou o guarda. Com os dedos enluvados, levantou a palmilha e encontrou a palavra escondida por baixo, o nome das sombras azuis entre a neve. Disse: - Pensava que não íamos procurar aí?

Quando tinha cinco anos, andei um Verão inteiro vestido com um fato-macaco verde cheio de insígnias nas mangas, com a minha espingarda de rolhas a dar tiros nas árvores inimigas. Tinha ainda um capacete de bombeiro, vermelho, com uma pala atrás, e uma vez levei tareia por usar a mangueira do jardim numa janela aberta. Quando crescesse, queria ser bombeiro ou soldado, e não via grande diferença entre os dois.

Passando a fronteira, o dinheiro tem mais cor. Nas notas azuis ou vermelhas vêm retratos de heróis cujos nomes nunca ouvi na escola.

Já não reconheço este país, a terra onde nasci. Estas montanhas continuam as mesmas. Os presidentes no meu dinheiro são os mesmos cujos nomes aprendi na escola. Contudo, o tempo mudou. No último Inverno, não houve neve. Em vez disso, os nomes de presidentes mortos caíram do céu. O vento levantou as palavras negras WASHINGTON e LINCOLN em amontoados a dar pelo joelho.

Não tive qualquer problema ao atravessar a fronteira. A guarda olhou para o passaporte e carimbou-o somente porque lhe pedi. Queria uma prova física de ter estado noutro sítio, algo mais permanente que a memória.

De certeza que não vinha a pensar em contrabando. À alvorada do segundo dia, passeei de automóvel pelas pradarias. Subindo uma ladeira, vi campos de trigo desenrolarem-se diante de mim como uma manta. Há campos idênticos no meu país, mas não temos nome para a cor do trigo maduro logo pela manhã.

O guarda fronteiriço rondou o carro, revistando-o com um espelho numa haste. Fez-me a abrir o porta-bagagem. Um cão farejou os estofos. - Abra a boca - mandou o guarda. Com os dedos enluvados, levantou-me a língua e encontrou a palavra escondida por baixo, o nome do trigo maduro pela manhã. Disse: - Pensava que não íamos procurar aí?

Há uma fronteira entre a inocência e a experiência, uma fronteira em movimento. Estou sempre a pensar que a transpus, e tendo-a atravessado, mudo de ideias sobre o que sei. Já sou um homem, e sei o que é ser um homem. Mas depois descubro que a fronteira me passou à frente, e que ainda tenho muito que aprender sobre ser um homem. A guerra nunca é necessária, penso. Mas a fronteira mudou de lugar. A guerra por vezes é necessária. Não, descubro que ainda estou no lado da inocência.

Crescem as mesmas árvores de ambos os lados da fronteira. No outro país, muita gente fala a mesma língua que no sítio onde nasci. Nem todas as palavras são as mesmas. A poeira não sabe a que país pertence. Hoje o vento sopra a poeira para norte e amanhã para sul, fazendo uma nação crescer à custa da outra, devolvendo depois o que tirou.

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Autor:
Bruce Holland Rogers