Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Jorge Candeias fala de O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva

Jorge Candeias -  Crítica |  19 Mai 2003

Eis um livro que, quando venceu o Prémio Caminho de FC em 1991, marcou o início de uma nova era na ficção científica portuguesa, já de certo modo antecipada pelo vencedor anterior do mesmo prémio: o brasileiro Bráulio Tavares e a sua A Espinha Dorsal da Memória.

Com efeito, se até ao início dos anos 90 a FC portuguesa se resumia praticamente a João Aniceto e a uma ou outra tentativa mais ou menos desastrada de escrever dentro do género por parte de escritores que nunca o deviam ter tentado, a partir dessa época e até cerca de 96-97, assistiu-se pela primeira vez à tentativa de publicar em Portugal uma ficção que fosse verdadeiramente científica, feita por portugueses e para portugueses.

Bastava isso para que O Futuro à Janela fosse um livro importante, mas há mais.

Luís Filipe Silva é um escritor irregular. Tanto parece em grandes dificuldades para sair de uma banalidade algo deprimente, como é capaz de rasgos magníficos, que já produziram algumas das melhores páginas da FC portuguesa. É também um escritor de FC que não se contenta com "a ideia", procurando em vez disso algo mais: um modo muito literário de olhar para o que se escreve.

E são essas as características que encontramos neste seu livro de estreia. Trata-se de uma colectânea de onze contos e um poema, antecedida de um pequeno ensaio sobre a importância do conto. Parte dos contos tinha sido anteriormente publicada nas páginas do DN Jovem, e nota-se bem um certo estilo DNJ nas entrelinhas.

Começa com uma história, intitulada «Dois Estranhos, um Encontro», em que um clone sofisticado do Infante D. Henrique recebe, muitos anos no nosso futuro, o rei D. João II, ou antes um seu clone, tão sofisticado como o do Infante, mas ignorante por completo, porque acabado de "chegar", das coisas que o rodeiam. Segue-se-lhe uma pequena história humorística em que um ET, pouco sabedor do sítio onde se vai meter, resolve vir fazer contacto para o Portugal profundo. O título é sugestivo: «Embaixadores de Boa Vontade, ou Contacto!»

O conto seguinte, «Os Poetas da Rua», é dos melhores do livro, mas também dos mais inclassificáveis. É um conjunto melancólico de onze pequenas histórias de vida, ou de onze pontos de viragem nas vidas de onze personagens. Certos pormenores sugerem de forma subtil que tudo se passa num futuro próximo, mas isso no fundo não tem grande importância. O que importa mesmo são os personagens e o que lhes acontece, acontecimentos envoltos numa certa poesia trágica.

«La Nausée II» é mais uma história literariamente forte, contada na primeira pessoa em forma de diário por um escritor que pretende escrever em Paris o livro sobre o Milénio. Hoje é passado, na altura em que foi escrita era ficção científica. Segue-se na ordem do livro «O Fernando Pessoa Electrónico». Trata-se de um conto curto divertidíssimo, que se resume a um diálogo entre uma personalidade simulada de Fernando Pessoa e um seu admirador de carne e osso, que se encontra com o poeta no espaço virtual.

«Pequenos Prazeres Inconfessáveis», outro ponto alto do livro, é um conto de terror. A princípio parece ao leitor que se trata de um simples caso de perversões sexuais, entre o incesto e o sado-masoquismo, entre um pai e uma filha. Mas depois, à medida que vamos seguindo a filha, já adulta, por algumas cenas da sua vida, vamo-nos apercebendo que a história é muito mais do que isso. E mais não convém dizer, para não estragar o prazer da descoberta.

«O Jogo do Gato e do Rato» é outro conto em que a total incompreensão entre humanos e não-humanos cria situações humorísticas, desta vez com graves consequências para os humanos. A ideia não estará particularmente bem concretizada, mas é divertida. «Série Convergente» é outro conto que tem na componente literária a sua maior força. E este só com grande boa vontade se pode enquadrar na literatura fantástica, ou talvez haja ali, subtilmente escondida, uma viagem no tempo. É construído de forma hábil, com constantes saltos para trás e para a frente no tempo da narração, em torno de uma história de crime.

O conto seguinte, «Também há Natal em Ganimedes», é dos mais fracos do livro. Num Ganimedes em vias de terraformação, uma família exactamente igual a qualquer família da Terra, século XX, celebra o Natal precisamente ao mesmo tempo que na Terra, século XX-e-tal. Se não bastasse a inverosimilhança de tudo isto, o conto ainda consegue ser lacrimejante. Parece um caso grave de DNJite...

«A Última Tarde» mostra-nos como, numa espécie diferente da nossa, os problemas inerentes à conquista do espaço se iriam pôr de forma também muito diferente. É um conto muito interessante, que alia, a uma ideia belíssima, um tratamento literário se não excelente, pelo menos bem acima do que é costume ver-se na FC em português.

O livro praticamente acaba com uma noveleta, «Criança Entre as Ruínas» que, infelizmente, fica muito aquém do resto dos contos. Numa Terra pós-apocalíptica é descoberta, pelos sobreviventes em órbita, uma criança literalmente entre as ruínas. E a partir deste pressuposto inicial, a história desenrola-se lenta e lacrimejante até ao desenlace, que é previsível desde a segunda ou terceira página. A colectânea merecia melhor conclusão que esta, e nem o poema que remata o livro, «Ala Anima», serve para dissipar o mau sabor final, embora seja um interessante exemplo de poesia de FC.

Tudo somado, é um livro que deve ser lido, e que pode, inclusivamente, fazer algumas pontes entre a FC e o mainstream. Não será uma obra-prima, mas é muito bom como primeiro livro. Quatro estrelas.
 

(c) Jorge Candeias, 2002

(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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Autor:
Jorge Candeias

Textos:
O Futuro à Janela: Estudo da Obra e da Ficção Científica Portuguesa Actual
La Nausée II