Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Noveleta

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~ Fim de Semana em Paris ~

- O linque não é porcaria nenhuma!

- Sim, tens toda a razão. - suspirou ele, baixinho - Está tudo?

Ela resmungou que achava que sim, e pôs-se a revistar o saco de mão. Ele passou-lhe a mão pelo braço numa carícia tímida, um pouco brusca talvez, e murmurou, como que a pedir desculpa:

- Deixa isso. Temos de ir embora se quisermos chegar a Paris ainda hoje. Se faltar alguma coisa compra-se lá.

Ela encolheu os ombros:

- Está bem, vamos lá embora...

Ele pôs o carro em andamento. Tinha orgulho naquela máquina e na imagem que tinha de si próprio ao volante dela. Via-se esse orgulho na maneira como lhe passava as mãos por volante, manípulo de mudanças ou comutadores. Como que adaptava o órgão à máquina, tornando-se aquele uma extensão desta. Pelo menos era assim que se via dentro do automóvel. Costumava dizer aos amigos e até a conhecidos de ocasião que o ruído de um motor bem afinado era um dos mais belos sons no Universo. Esta frase era uma das suas imagens de marca. Sabia que havia quem troçasse dela, mas não conseguia evitar soltá-la. Não que tentasse com muita força: achava que devia deixar aos outros uma imagem coerente de si mesmo, e se havia alguém a quem essa imagem desagradasse, paciência. Tentara demasiado agradar a gregos e troianos no passado. Depois compreendera que isso era impossível. Um gasto inútil de energias e de karma social. Agora só queria agradar a gregos. Aos seus gregos.

Claro que era sempre ele quem conduzia o automóvel. Julgava fazê-lo particularmente bem. Muito melhor que qualquer piloto automático que já tivesse visto. Achava a condução das IAs uma interminável seca. Uma coisa mecânica, sem vida, previsível. Quanto a quase todos os seus conhecidos, incluindo, claro está, as várias parceiras que fora tendo ao longo da vida, nem havia comparação. A actual não era excepção mas tinha relativamente a algumas das outras a vantagem de não se interessar particularmente por ter um carro nas mãos. Nisso, a pior fora a Adelaide. Esboçou um meio sorriso ao lembrar-se da Adelaide. Conduzia pessimamente mas teimava em fazê-lo, ou pelo menos em que tinha tanto direito a fazê-lo como ele. Era muito consciente dos seus direitos, a Adelaide. Foi a única altura da sua vida em que ele se deixou seduzir pelas alegrias do piloto automático. Pelo menos não era a Adelaide quem tinha o carro na mão! E enquanto a IA os transportava havia sossego. A Adelaide não reivindicava, não se queixava, não lhe azucrinava o juízo.

Claro que aquilo não podia durar muito...

Enquanto passeava indolentemente pelas suas memórias, manobrava pelas ruas da cidade em direcção à saída principal para Leste. Ao mesmo tempo ia introduzindo o itinerário no computador de bordo, calibrando o GPS e estabelecendo limites máximos de demora antes de proceder a desvios. Já era automático: fazia tudo aquilo sempre que partia numa viagem mais longa. Era parte da sua perícia no manejo da máquina. E fazia questão de exercer essa perícia mesmo que não fosse necessário. Especialmente quando não era necessário. Tinha muito mais sabor assim.

O passo seguinte era verificar as condições de trânsito através do linque de tráfego. O seu vinha de fábrica, porque o carro era novo, e porque era obrigatório ter uma coisa dessas instalada. Se não fosse assim, teria prescindido do linque. Gostava do imprevisto. E da vaga sensação de perigo que vinha com o imprevisto. E não gostava de saber logo no início da viagem como ela iria decorrer. Que, lá no fim, iria ter problemas. Para quê? De que adiantava viajar preocupado sem que houvesse a possibilidade de resolver alguma coisa?

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Além disso, detestava linques.

Mas tinha de reconhecer que por vezes aquilo dava jeito. Por exemplo quando havia horários a cumprir. Quando era preciso estar em tal sítio às tantas horas. Ou quando se conhecia mal a região. Ou quando se tinha horários a cumprir numa região mal conhecida, como agora. Por isso, verificou as condições de trânsito através do linque de tráfego, desejando que não houvesse nenhum congestionamento, nenhum corte de estradas, nenhum desvio. Desejando poder usufruir da viagem em si mesma, sem constrangimentos. Mas os aparelhos têm ideias próprias. E motivações mecânicas. Por isso o linque informou-o metodicamente de que o trânsito estava pesado nas imediações de Paris e se previa um agravamento para as 12 horas seguintes. Péssimas notícias. Ia ter de planear a viagem, em vez de simplesmente deixar-se ir. Não ia poder gozar paisagens nem fazer desvios para gozar outras paisagens. Ia ter de acelerar bastante ao longo de toda a ER1, para não ser obrigado a apanhar alguma estrada secundária algures em França ou mesmo ainda na Occitânia. Alguma estrada cheia de buracos e tractores eléctricos a circular a 10 à hora pelo seu centro geométrico. Algum dano irreparável à suspensão do seu carro ou à sua paciência. Ou a ambas.

É que o trânsito na União andava caótico. Desde que falhara a última tentativa da Comissão para impor um imposto sobre os combustíveis alternativos, dando origem aos bloqueios e motins do último Verão, toda a gente que era gente parecia andar constantemente em movimento. Aquilo mais parecia um frenesim de fim de festa, como se todos quisessem aproveitar ao máximo os últimos restos de algo que estava quase a acabar.
E estava. A sua reunião era sobre isso mesmo.

Mas o pior de tudo ainda eram os doidos. Os que de repente resolviam que já não havia regras de trânsito para respeitar e saíam estrada fora, fazendo asneira sobre asneira, atropelando, estropiando, violentando o sossego dos cidadãos pacatos que seguiam calmamente do lugar A para o lugar B, com o piloto automático ligado, sem mais desvarios. Houve tantas vítimas e tão grande prejuízo nos sistemas de emergência dos países mais atingidos por essa praga que a Comissão acabou por tornar obrigatórios os linques. Não sem antes terem caído governos.

Se bem que os cínicos dissessem que a Comissão só se mexera quando o primeiro-ministro do Algarve morrera com a amante em plena Via do Infante, num acidente provocado por um desses paranóicos. Outros, talvez mais cínicos ainda, diziam que o culpado do acidente fora o próprio ministro. Ou a amante.

Fosse pelo que fosse, a Comissão mexera-se. Coisa rara, nos dias que correm.

- José, porque não vamos nós de avião?

Ele estava tão distraído, tão envolvido na condução e nos seus pensamentos, que quase se sobressaltou com a pergunta. Escusada, de resto: ela sabia perfeitamente porquê. Mas era perita nestas pequenas provocações extemporâneas que tinham o condão de irritá-lo. E que paradoxalmente constituíam ao mesmo tempo uma boa parte da sua sedução.

- Queres mesmo que te diga o que já sabes? - respondeu ele - Ou já te esqueceste da conversa de ontem?

- Não percebo, a sério que não percebo. - ela falava como se monologasse, sem entoação - Se fossemos de avião púnhamo-nos no centro de Paris em três ou quatro horas, já contando com as viagens de e para os aeroportos. Assim...

- Assim vamos levar um dia inteiro, se não apanharmos engarrafamentos - insistiu ela passado um momento. - Não percebo!...

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Autor:
Jorge Candeias