Além disso, detestava linques.
Mas tinha de reconhecer que por vezes aquilo dava jeito. Por exemplo quando havia horários a cumprir. Quando era preciso estar em tal sítio às tantas horas. Ou quando se conhecia mal a região. Ou quando se tinha horários a cumprir numa região mal conhecida, como agora. Por isso, verificou as condições de trânsito através do linque de tráfego, desejando que não houvesse nenhum congestionamento, nenhum corte de estradas, nenhum desvio. Desejando poder usufruir da viagem em si mesma, sem constrangimentos. Mas os aparelhos têm ideias próprias. E motivações mecânicas. Por isso o linque informou-o metodicamente de que o trânsito estava pesado nas imediações de Paris e se previa um agravamento para as 12 horas seguintes. Péssimas notícias. Ia ter de planear a viagem, em vez de simplesmente deixar-se ir. Não ia poder gozar paisagens nem fazer desvios para gozar outras paisagens. Ia ter de acelerar bastante ao longo de toda a ER1, para não ser obrigado a apanhar alguma estrada secundária algures em França ou mesmo ainda na Occitânia. Alguma estrada cheia de buracos e tractores eléctricos a circular a 10 à hora pelo seu centro geométrico. Algum dano irreparável à suspensão do seu carro ou à sua paciência. Ou a ambas.
É que o trânsito na União andava caótico. Desde que falhara a última tentativa da Comissão para impor um imposto sobre os combustíveis alternativos, dando origem aos bloqueios e motins do último Verão, toda a gente que era gente parecia andar constantemente em movimento. Aquilo mais parecia um frenesim de fim de festa, como se todos quisessem aproveitar ao máximo os últimos restos de algo que estava quase a acabar.
E estava. A sua reunião era sobre isso mesmo.
Mas o pior de tudo ainda eram os doidos. Os que de repente resolviam que já não havia regras de trânsito para respeitar e saíam estrada fora, fazendo asneira sobre asneira, atropelando, estropiando, violentando o sossego dos cidadãos pacatos que seguiam calmamente do lugar A para o lugar B, com o piloto automático ligado, sem mais desvarios. Houve tantas vítimas e tão grande prejuízo nos sistemas de emergência dos países mais atingidos por essa praga que a Comissão acabou por tornar obrigatórios os linques. Não sem antes terem caído governos.
Se bem que os cínicos dissessem que a Comissão só se mexera quando o primeiro-ministro do Algarve morrera com a amante em plena Via do Infante, num acidente provocado por um desses paranóicos. Outros, talvez mais cínicos ainda, diziam que o culpado do acidente fora o próprio ministro. Ou a amante.
Fosse pelo que fosse, a Comissão mexera-se. Coisa rara, nos dias que correm.
- José, porque não vamos nós de avião?
Ele estava tão distraído, tão envolvido na condução e nos seus pensamentos, que quase se sobressaltou com a pergunta. Escusada, de resto: ela sabia perfeitamente porquê. Mas era perita nestas pequenas provocações extemporâneas que tinham o condão de irritá-lo. E que paradoxalmente constituíam ao mesmo tempo uma boa parte da sua sedução.
- Queres mesmo que te diga o que já sabes? - respondeu ele - Ou já te esqueceste da conversa de ontem?
- Não percebo, a sério que não percebo. - ela falava como se monologasse, sem entoação - Se fossemos de avião púnhamo-nos no centro de Paris em três ou quatro horas, já contando com as viagens de e para os aeroportos. Assim...
- Assim vamos levar um dia inteiro, se não apanharmos engarrafamentos - insistiu ela passado um momento. - Não percebo!...