- Claro que não! - exclamou ele, numa alegria que até a si soou a falso. - Queres que apague o rádio?
- Faz como quiseres. - disse ela e esgueirou-se para o banco de trás, uma viagem contorcionista cheia de arfares e gemidos amplificados pelo confinamento naquele espaço diminuto.
- Filomena - chamou ele quando aquilo parou - não vamos zangar-nos, pois não?
- Há algum motivo para nos zangarmos, José?
- Não... suponho que não... - hesitou ele.
Olhou pelo espelho retrovisor. Dela só se via um braço, apoiado indolentemente no encosto do banco. A música martelava-lhe nos ouvidos. Estendeu o braço e desligou o rádio. Ouviu-a suspirar, lá atrás.
Durante alguns quilómetros conduziu desatento ao que se passava na estrada. Não conseguia libertar-se da conversa. Sentia que devia fazer ou dizer alguma coisa, mas não conseguia decidir o quê. A ausência de sons vindos do banco de trás inquietava-o, ou talvez simplesmente o enervasse. Quase preferia a música estúpida do rádio. Ia revivendo cada frase da conversa anterior, como se andasse à procura nem sabia de quê. Talvez alguma inflexão. Uma palavra fora de contexto. Um sinal de qualquer coisa.
Da estrada via apenas vultos e a sua desatenção foi brindada com um par de zumbidos provenientes do linque. Aproximações excessivas ao carro da frente ou então à berma ou então velocidade demasiada. Acabou por transferir a irritação para o aparelho. O linque estava sempre atento, o linque nunca se enganava relativamente à posição e velocidade do carro, o linque era um crítico implacável da sua perícia ao volante. Com um olhar de raiva para o mostrador, vazio por aquelas bandas, só com um LED a piscar a um dos cantos, forçou-se a limpar o espírito de preocupações e fixou os olhos e a atenção na condução. Era estúpido se se deixasse envolver naquela teia.
Afinal estava onde gostaria de estar sempre: ao volante do seu automóvel.
Seguiu-se um daqueles tempos mortos que nos filmes antigos se mostravam com uma sucessão monótona de postes de electricidade, ou de árvores, ou de dunas. Ali eram as cidades do centro de Castela que ficavam para trás uma a uma, monotonamente. Salamanca, Tordesillas, Valladolid, Aranda del Duero, a grande volta pelo norte de Madrid, para evitar a confusão do trânsito em torno da maior cidade da Península, e o terrível smog madrileno. Principalmente o smog madrileno. Aquele ar pestilento que chegava a exigir uma protecção própria nos dias mais abafados de Verão.
Arranjara a sua bronquite multi-resistente nos dois anos que passara em Madrid. E não queria pensar nisso.
- Filomena - chamou -, estamos quase a entrar na Catalunha. Não queres parar para comer qualquer coisa?
Ela não respondeu. Espreitou pelo retrovisor mas não viu nada. Era quase como se ela não estivesse ali. Por vezes parecia desvanecer-se, esvair-se em silêncio. Como que flutuava, milímetros acima do chão, sem soltar um som. Nem um roçagar de roupa, nem mesmo a respiração. Mas agora devia estar simplesmente a dormir enrolada no banco na sua posição típica. Só não dava para espetar o rabo, não havia espaço que chegasse lá atrás. Uma imagem que não chamara surgiu na mente dele. Ela na penumbra, deitada, a dormir profundamente, numa cama, na sua cama. De rabo espetado contra a sua coxa. Gemendo baixinho como quando sonhava. Sentiu um leve indício de uma erecção. Agora não. Sacudiu a ideia que se esfumou, puf, já lá não está.
Resolveu deixá-la dormir e fechar os ouvidos à trovoada que começava a ribombar-lhe nas entranhas. Mais quilómetros de tempo morto. Ele conduzia, ela fazia o que quer que estivesse a fazer no banco de trás. Entretanto, a estrada levou-os à Catalunha e pouco depois passava velozmente ao lado de Calatayud. Aqui era preciso um pouco mais de atenção. Por vezes, os espanholistas atacavam turistas ou outros viajantes. E o nacionalismo catalão também podia ser perigoso.
Nesta zona é que não iriam parar, com tripas revoltadas ou sem elas!
Apesar de tudo, a Catalunha estava melhor que o País Basco! Aí até havia controlos de fronteira, com revisões de bagagem e tudo! E matrículas castelhanas não passavam, nem mesmo subornando a polícia. O que não evitava as bombas.