Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Noveleta

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~ Fim de Semana em Paris ~

Ele começou a explicação - Filomena... - mas suspirou e desistiu. Ela estava só a fazer conversa, a procurar seguir por um caminho que ele não queria percorrer. Sabia tão bem como ele que viajar de avião era muito mais caro, mas teimava em que não tinham dificuldades de dinheiro e se podiam portanto dar a esse luxo. O que até era verdade, de certo modo. Mas ele não estava disposto a aceitar o que lhe parecia um desperdício totalmente desnecessário. Um luxo despropositado. Uma parvoíce.

Até por causa do ambiente: os aviões eram dos poucos veículos que não funcionavam a gás.

- Deixa-me em paz com essa conversa, sim? - acabou ele por pedir de um modo mais ríspido do que desejaria - Estou a conduzir.
Pelo canto do olho viu o olhar que ela lhe lançou. Frio. Duro. Sem revelar qualquer tipo de sentimento ou ressentimento, mas desprovido da suavidade de um olhar verdadeiramente vazio. Aquela maneira que ela tinha de olhar sempre o assustara, e mais ainda quando era para si que olhava assim. Geralmente seguia-se uma discussão recheada de argumentos sem nexo, lançados como lanças cujo único propósito era ferir. Sentiu-se inundado de adrenalina. O corpo preparava-se para fugir ou combater, mas não iria fazer nem uma coisa nem outra e sabia disso. O que só piorava as coisas.

Tinha de controlar aquela adrenalina. Não se podia deixar levar para estradas cheias de buracos e de lombas e com precipício ao fundo. Não podia escorregar por aí.

Felizmente veio apenas uma pergunta:

- Posso então pôr música? Ou isso também incomoda a tua condução?

- Põe lá a tua música - concedeu ele após uma pausa.

- Obrigada. És muito gentil.

Enquanto ela se debruçava para o rádio e o sintonizava, ele ficou sem saber se devia ficar aliviado pelo aparente desenlace pacífico do conflito ou, pelo contrário, apreensivo. A ironia era um mal menor e podia bem com ela. Não era a costumeira sucessão de acusações aos seus hábitos, às suas opções, ao seu coeficiente de inteligência. Normalmente vazias de subtileza. Geralmente envolvendo toda a sua linhagem genética, passada, presente e futura.

Mas aquela suavidade incaracterística podia não ser mais que a preparação de males maiores.

Olhou-a quando a música começou a tocar. Ela não reagiu, embora não houvesse qualquer dúvida de que vira o seu olhar. Olhar esse que foi devolvido à estrada quando o linque começou a zumbir. Informava-o de que se aproximara demasiado do veículo que seguia à sua frente. Levantou o pé do acelerador. Ela fitava-o intensamente. Como que lhe sugava as feições para processá-las dentro do seu descontentamento. Depois levou a mão ao cabelo e remexeu-se no banco.

- José, incomodo-te assim tanto? Mesmo sem abrir a boca?

Olhou-a de relance. Responder significava discussão, não responder era o mesmo que dizer que sim.

- Não.

- Estou a ver... - disse ela depois duma pausa. E transformou a boca numa linha fina.

Os quilómetros seguintes foram percorridos em silêncio. Ele conduzia. Ela olhava pela janela, talvez para a paisagem. O rádio enchia o habitáculo de música de dança numa alegria incongruente. Aquilo irritava-o. Mas não se atrevia a dizer nada. Tinha a certeza de que a consequência seria uma explosão. Acusações e contra-acusações. Mais adrenalina nas suas veias. E provavelmente nas dela também. Um fim-de-semana arruinado em Paris. Um desperdício. Na verdade, estava surpreendido com a reacção dela. Não era de modo algum típica. Não sabia bem o que pensar. Talvez fosse uma tentativa para não estragar o fim de semana logo ali. Evitar o desperdício. Afinal sempre era uma viagem a Paris, e não é todos os dias que se vai à cidade da Pirâmide de Vidro. Fora com esse argumento que a convencera a ir, aliás. A capital do Bloco Ocidental da União era uma cidade que todos queriam visitar, pelo menos uma vez na vida. E alguém que se cansasse de lá ir era excêntrico, no mínimo. Olhado de lado como um espécime raro de uma espécie em vias de extinção. De uma extinção merecida. Que só pecava por tardia.

Nenhum dos dois quebrou o silêncio durante quilómetros.

Entretanto, começavam a aproximar-se da transição para Castela, e o som martelado da fala castelhana sobrepunha-se a espaços à emissão portuguesa. Ele resolveu aproveitar a ocasião:

- Não queres pôr o rádio na REP? Ou noutra estação paneuropeia qualquer? Uma estação sem interferências? Pelo menos enquanto estivermos aqui na zona de fronteira?

- Acho que vou dormir um bocado lá para trás. - respondeu ela - Não te importas, pois não?

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- Claro que não! - exclamou ele, numa alegria que até a si soou a falso. - Queres que apague o rádio?

- Faz como quiseres. - disse ela e esgueirou-se para o banco de trás, uma viagem contorcionista cheia de arfares e gemidos amplificados pelo confinamento naquele espaço diminuto.

- Filomena - chamou ele quando aquilo parou - não vamos zangar-nos, pois não?

- Há algum motivo para nos zangarmos, José?

- Não... suponho que não... - hesitou ele.

Olhou pelo espelho retrovisor. Dela só se via um braço, apoiado indolentemente no encosto do banco. A música martelava-lhe nos ouvidos. Estendeu o braço e desligou o rádio. Ouviu-a suspirar, lá atrás.

Durante alguns quilómetros conduziu desatento ao que se passava na estrada. Não conseguia libertar-se da conversa. Sentia que devia fazer ou dizer alguma coisa, mas não conseguia decidir o quê. A ausência de sons vindos do banco de trás inquietava-o, ou talvez simplesmente o enervasse. Quase preferia a música estúpida do rádio. Ia revivendo cada frase da conversa anterior, como se andasse à procura nem sabia de quê. Talvez alguma inflexão. Uma palavra fora de contexto. Um sinal de qualquer coisa.

Da estrada via apenas vultos e a sua desatenção foi brindada com um par de zumbidos provenientes do linque. Aproximações excessivas ao carro da frente ou então à berma ou então velocidade demasiada. Acabou por transferir a irritação para o aparelho. O linque estava sempre atento, o linque nunca se enganava relativamente à posição e velocidade do carro, o linque era um crítico implacável da sua perícia ao volante. Com um olhar de raiva para o mostrador, vazio por aquelas bandas, só com um LED a piscar a um dos cantos, forçou-se a limpar o espírito de preocupações e fixou os olhos e a atenção na condução. Era estúpido se se deixasse envolver naquela teia.

Afinal estava onde gostaria de estar sempre: ao volante do seu automóvel.

Seguiu-se um daqueles tempos mortos que nos filmes antigos se mostravam com uma sucessão monótona de postes de electricidade, ou de árvores, ou de dunas. Ali eram as cidades do centro de Castela que ficavam para trás uma a uma, monotonamente. Salamanca, Tordesillas, Valladolid, Aranda del Duero, a grande volta pelo norte de Madrid, para evitar a confusão do trânsito em torno da maior cidade da Península, e o terrível smog madrileno. Principalmente o smog madrileno. Aquele ar pestilento que chegava a exigir uma protecção própria nos dias mais abafados de Verão.

Arranjara a sua bronquite multi-resistente nos dois anos que passara em Madrid. E não queria pensar nisso.

- Filomena - chamou -, estamos quase a entrar na Catalunha. Não queres parar para comer qualquer coisa?

Ela não respondeu. Espreitou pelo retrovisor mas não viu nada. Era quase como se ela não estivesse ali. Por vezes parecia desvanecer-se, esvair-se em silêncio. Como que flutuava, milímetros acima do chão, sem soltar um som. Nem um roçagar de roupa, nem mesmo a respiração. Mas agora devia estar simplesmente a dormir enrolada no banco na sua posição típica. Só não dava para espetar o rabo, não havia espaço que chegasse lá atrás. Uma imagem que não chamara surgiu na mente dele. Ela na penumbra, deitada, a dormir profundamente, numa cama, na sua cama. De rabo espetado contra a sua coxa. Gemendo baixinho como quando sonhava. Sentiu um leve indício de uma erecção. Agora não. Sacudiu a ideia que se esfumou, puf, já lá não está.

Resolveu deixá-la dormir e fechar os ouvidos à trovoada que começava a ribombar-lhe nas entranhas. Mais quilómetros de tempo morto. Ele conduzia, ela fazia o que quer que estivesse a fazer no banco de trás. Entretanto, a estrada levou-os à Catalunha e pouco depois passava velozmente ao lado de Calatayud. Aqui era preciso um pouco mais de atenção. Por vezes, os espanholistas atacavam turistas ou outros viajantes. E o nacionalismo catalão também podia ser perigoso.

Nesta zona é que não iriam parar, com tripas revoltadas ou sem elas!

Apesar de tudo, a Catalunha estava melhor que o País Basco! Aí até havia controlos de fronteira, com revisões de bagagem e tudo! E matrículas castelhanas não passavam, nem mesmo subornando a polícia. O que não evitava as bombas.

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Autor:
Jorge Candeias