Conceito de Luís Filipe Silva

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Pain
O Inferno de Dan (Simmons)

Luís Filipe Silva -  Crítica |  13 Mai 2003

EYES I DARE NOT MEET IN DREAMS

Eis Jeremy Bremen, o homem que possuía a capacidade extraordinária de ler indesejadamente as mentes dos outros. Bremen, o professor matemático que elaborava a sua tese de doutoramento sobre a análise das frentes ondulatórias aplicadas à consciência, numa tentativa para explicar racionalmente o seu dom. O homem que encontrou Gail numa festa, a sua metade perdida, a única mulher que possuía a mesma capacidade telepática e que significou para si a confirmação de que ele nem era um caso isolado nem um monstro. Juntos, tornaram-se num só, vivendo uma intimidade muito particular que outros casais dificilmente igualariam, mas isolando-se do mundo. Nunca revelaram a ninguém que conseguiam ler as mentes; de facto, o dom tornava-se numa praga: Jeremy era incapaz de refrear o acesso ao que ia no espírito dos outros, à dor e pesar e mágoa que afligiam as pessoas que o rodeavam. Quando encontrou Gail, tudo mudou. Ela servia-lhe de escudo. As suas capacidades, quando somadas, anulavam-se em relação aos outros que não tinham a mesma habilidade, só lhes permitia comunicarem entre si. Erguiam uma barreira natural ao fluxo mental alheio, ou como Jeremy lhe chamava, o «neuro-ruído».

Depois, Gail morre, vítima de cancro. E Jeremy, embora continuando vivo, morre também.

Pain. Dor. A Dor. O sofrimento de perder quem se ama, tombado em batalha contra uma doença suja e estúpida. A ausência que é tão grande quanto o universo e contudo não o consegue preencher, a ausência sentida pela alma. O grito silencioso e entorpecido. Adormecido, estagnado, vegetal. A morte. A dor da morte. Pain.

Jeremy fica exposto ao mundo. Fica indefeso contra o insurgimento da dor de todas as pessoas, que o inunda como uma onda. Jeremy afunda-se lentamente, e os amigos que o tentam consolar (mas para proveito próprio, pensando sempre no proveito próprio) não percebem. Desconhecem que Jeremy acompanhou a esposa em todos os estádios da doença, até morrer, estando ao lado dela, ou melhor ainda, descendo até à praia para lhe proporcionar, através da união especial, a visão dos últimos momentos de um ocaso sobre o mar.

 

PAIN poderia ser o título do livro de Dan Simmons que conta a história de Jeremy. Um livro estranho, segundo qualquer abordagem. Onde se morre, e se morre abundantemente - mas não de formas inesperadas (na maior parte do tempo). Existe uma cena em que o protagonista procura fugir a uma psicopata assassina que se entretém a atraír pessoas sem rumo que surgem na povoação do seu rancho, uma daquelas povoações perdidas no meio da América que imediatamente evocam os acordes lúgubres de Ry Cooder, e que depois as mata, pendurando os corpos entre peças de gado no seu armazém-frigorífico. Existe uma perseguição feita pela Máfia, a que Jeremy consegue sobreviver. Mas estas são excepções. Por que neste livro morre-se de cancro.

E contudo, não é a morte o tema principal, mas a sobrevivência. A dor dos que continuam vivos, e assim terão de continuar, pela existência fora: sozinhos. Despojados dos entes amados. Ocos.

Não se trata de relatar a «culpa dos sobreviventes». Não se trata de tentar encontrar uma forma de conciliação com a perda. Não é um livro sobre a cura da alma, mas sobre o seu sofrimento. É a dor em si mesma, descrita de uma forma como não se encontra igual na literatura. Simmons não grita: cala-se. Fala de ausência, de ruptura, de inacção. De, nas palavras de Pessoa, «existir por não morrer». Mas não discursa sobre os temas. Vive-os.

Livro negativo? Sê-lo-á, se considerarem o tema da dor e da morte como formas negativas. Literariamente, este livro não é negativo. Não é positivo. Trata-se daquela raridade: o livro sem sinal, sem pólo magnético, o livro que não discursa sobre, mas é.

Chama-se The Hollow Man.

Jeremy.

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(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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Luís Filipe Silva