Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


06 Agosto 2006

QUE É FEITO DA FC NAS NOSSAS LIVRARIAS? Ainda no outro dia comprei O Velho Século XX, anunciado na página principal do TecnoFantasia, e que me encontro a ler - sim, em português. Haldeman, apesar de alguns bons feitos, nunca foi um autor de topo cá em casa, e logo não me importei de adquirir a versão portuguesa. O habitual problema com as edições portuguesas - a tradução - começa logo na primeira página, onde uma nota de rodapé (da tradutora) absolutamente desnecessária nos indica a localização geográfica de Gallipoli mas sem nenhum comentário ao facto de ter sido palco de uma das batalhas mais importantes da Primeira Guerra, apesar de a história se situar inicialmente neste período; depois avança pelas habituais expressões forçadas que resultam da tradução directa do inglês, incongruência de géneros, e por diante. Além do facto de notas de rodapé daquela natureza serem absolutamente arcaicas na era do Google, a falta de atenção dadas à tradução e à revisão (quando aprendem que em português a designação de um povo não começa com maiúscula?) empobrece significativamente a qualidade da obra, da publicação, da editora, e no fim, do género como um todo.

Se é verdade que sem as colecções de bolso e Nébula da Europa-América, e sem a Argonauta da Livros do Brasil, a geração em que cresci de seguidores do género teria tido dificuldade em conhecer e crescer a ler ficção científica, também é verdade que, passados os anos gloriosos, as mesmas contribuiram para a queda - ou foram arrastados na avalanche - da qualidade desta literatura entre nós. Se a maior parte, ou se afastou de vez ou iniciou leituras nas línguas originais, foi decididamente por uma falta de acessibilidade de bom material em português, e também porque a percepção de descuido e desinteresse por parte das editoras era demasiado patente na forma como as colecções iam sendo (in)geridas.

Apesar das queixas, uma triste verdade é que, se não fossem as colecções moribundas das quais, para meu espanto, a Nébula ainda é a mais activa, não haveria ficção científica em português - agora que a Presença estabeleceu um longo hiato para reavaliar o potencial de mercado (um hiato só muito recentemente quebrado com a publicação de um livro de Jack Chalker) da colecção Viajantes do Tempo, agora que novas editoras geridas por equipas pequenas surgem com propostas essencialmente concentradas em história alternativa, alegorias, fantasia ou impressionismo, agora que há supostamente mais acesso e conhecimento do género graças à tecnologia -, não teríamos visto sequer um novo Robert Siverberg (Roma Eterna) que fazia as delícias das nossas leituras há uns dez, vinte anos.

Numa época de excessiva atenção aos arquétipos da memória e das lendas, mas pouca à análise da estrutura subjacente do cérebro e das sociedades que afinal estão na origem de todos os mitos e arquétipos e demais ficções, assiste-se a uma cisão real dos dois tipos de fantástico e à perigosa diminuição de importância do racionalismo. Estaremos, no meio de toda a tecnologia que nos rodeia, a regredir, enquanto civilização ocidental, à mentalidade infantil de acreditar num mundo encantado? Ou é problema apenas da geração dominante, e quando os nossos filhos tomarem conta disto, uma vez que estão habituados ao ritmo de mudança e à influência da tecnologia em permanente evolução nas suas vidas como um dado adquirido, voltaremos à normalidade?

E ainda assim, porque não se publica FC a sério? Não se vende, realmente? Com boas capas, boas traduções, boa publicidade? O resultado da Rainha dos Anjos, um livro decididamente não dos mais fáceis de ler por um público desabituado à FC, foi muito positivo. Porque não arriscar, por uma vez que seja?

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ESTOU BASTANTE CÉPTICO com esta iniciativa: tem-se mostrado impossível controlar ou contrapor o domínio da linguagem ao longo das eras (recomendo vivamente The Language Instinct sobre este assunto), e quem julgue que a colonização territorial equivale constantemente à alteração da língua predominante vai ter uma grande surpresa com Empires of the Word. Uma linguagem pan-polinésica imposta à força e não adquirida pelo fluxo natural da cultura e da quantidade/qualidade de informação transmitida (ou seja, o exemplo do inglês)?

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02 Agosto 2006

JEFF EM LISBOA. Foi há quase dois fins de semana que Jeff VanderMeer passou por Portugal e deixou a sua marca de simpatia e convivialidade. Quem esteva no meio teve acesso a um conjunto de saídas e visitas por alguns sítios turísticos (ai, Sintra e Belém, que faríamos sem vocês) ou jantares em conjunto. Os restantes tiveram oportunidade de vê-lo em acção na Fnac do Colombo, Lisboa, com a leitura de um excerto de A Transformação de Martin Lake e Vidas Secretas, e onde apresentou ainda uma versão inicial do que será um filme curto baseado no seu último livro, Shriek: An Afterword. Tudo isto por ocasião do lançamento de um pequeno volume onde estão reunidas, em português, algumas das suas novelas. Em breve farei uma crítica das mesmas, e do livro como um todo. Até lá fiquem-se com uma descrição feita pelo Luís Rodrigues, que incentivou tudo isto, da passagem de Jeff e da sua esposa Ann por Lisboa, algumas fotografias da sessão de lançamento e os primeiros quinze minutos em versão audio (18Mb) da mesma (infelizmente por motivos técnicos não consegui gravar a totalidade, e mesmo a qualidade não é das melhores, mas ao menos é um registo), onde poderão escutar o Luís Rodrigues a apresentar o autor, acompanhado do Pedro Marques, editor da Livros de Areia, e da leitura de um extracto de A Transformação de Martin Lake pelo autor..

(Ah, quem é Jeff VanderMeer? O senhor na imagem, obviamente. Que pergunta!...)

 

 

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30 Julho 2006

O DESAFIO DA BREVIDADE é particularmente interessante na ficção científica: o que torna uma frase, um texto, em FC? O que a separa de uma descrição do mundo contemporâneo, de literatura mainstream? E que extensão mínima requer esse texto para invocar o sentido do maravilhoso? Com maior ou menor consciência desta interrogação, este desafio tem tido várias manifestações no seio do pequeno grupo de entusiastas portugueses: começaram por ser os mini-contos de 150 palavras publicados no boletim mensal da associação Simetria, depois o meu «FC por SMS» (aqui, aqui e aqui) - FC em 160 caracteres -, sendo o último acontecimento na forma de Mini-Sagas (aqui exemplarmente explicado) - FC em 50 palavras exactas.

E porque alguns desafios são irresistíveis, não deixei de tentar a minha contribuição a este último (embora não tivesse participado no concurso) - apesar de, confesso, um mau entendimento das «regras» me fizesse considerar que 50 palavras eram limite máximo, e não para cumprir com exactidão. Aqui vão os resultados, com explicação de rodapé:

Primeira: Sem Título

AQUI JAZ

FRANCISCO JOSÉ SALGUEIRO MAIA

1944 - 1974

TRAIDOR À PÁTRIA

INSTIGADOR DA INSURREIÇÃO NACIONAL

INIMIGO DO POVO E DA NAÇÃO PORTUGUESA

ENTERRADO EM VALA CIVIL

DESTITUIDO DE HONRAS

EM MEMÓRIA DA COBARDIA MILITAR DE ABRIL

"DEUS É O ESTADO E O ESTADO É DEUS

E SALAZAR O SEU ETERNO NOME"

Segunda: Sem Título

Hesitou, o metal tinha um sabor desagradável, inesperado. Até no final a vida reservava surpresas. Isto comoveu-o, e receou chorar. Sabia que agia em vão. Que não o entenderiam como um sacrifício. Que quem o viesse a descobrir, dali a dias, leria na nota um conto de fantasia. Seria publicado? Ganharia um Hugo? Riu-se, o que lhe deu coragem para continuar. A verdade é que se borrifava para todos eles. Se não fosse a perspectiva da morte lenta e dolorosa, teria deixado a doença corroer-lhe a carne e abrir os portões do Inferno. Que melhor destino para a puta da Humanidade que sempre o desprezara?

 

Terceira: Contra a Demagogia

- Funciona assim, sr. Presidente: conta as palavras que profere a falar e escrever, e quando chega ao limite, zás! Liberta os contentores cheios de cianeto dos milhões de nanos nas suas veias. E ao fim de cinquenta palavras...
- Cinquenta palavras?!
- Quarenta e oito... – corrigiu maliciosamente o terrorista.

 

E como funcionam? Em que ponto, então, o banal se transforma em estranho, nos exemplos propostos? Analisemos muito rapidamente, com exposição de algumas técnicas de escrita utilizadas:

Na primeira, a manifestação ocorre na data de falecimento desse grande herói nacional que aos meros trinta anos ajudou a comandar um golpe de Estado: aqui sugere-se implicitamente que terá sido morto no cumprimento desse dever, primeira indicação de que o Movimento dos Capitães teria provavelmente falhado; o texto que segue torna-se na confirmação da suspeita e na solidificação de um Portugal que continuará sob a bota da ditadura e da propaganda fascista. É bastante minimalista, mas serve como exemplo que uma história não necessita de uma narrativa para funcionar, desde que se aproprie de uma imagem ou de um símbolo familiar para o leitor e o manipule de forma a obter os resultados desejados.

Na segunda, demasiado comprida para as regras (100 palavras), estamos perante uma situação de suicídio e sacrifício pessoal, mas que trará benefícios para a Humanidade. O motivo parece um «conto de fantasia». Porquê? «... a doença corroer-lhe a carne e abrir os portões do Inferno»: o protagonista sofre de uma doença que funciona como meio de transporte dos danados e que os soltaria entre nós, se a deixasse progredir pelo corpo (dark fantasy, portanto). A frase-chave fica ali perdida no meio de um acontecimento mais importante, o da escolha pessoal do momento da morte, e envolta numa questão ética (deveria ele, conhecendo a natureza da doença, sacrificar-se pelo bem da Humanidade? Numa história de heroísmo talvez isso acontecesse, mas aqui preferi assumir uma perspectiva mais cínica e apresentar um protagonista «que se borrifava para todos eles». Esta questão deriva da natureza da doença e não pode ser evitada no contexto da história, mas aqui é acompanhada de uma resposta). Esta mélange de temas carregados de significado é apresentado, em termos estilísticos, em media res, como se fosse um extracto de um conto maior. É uma técnica que gosto bastante de utilizar, pela subtileza e suavidade de abordagem. Para todos os efeitos, esse conto teve de existir, na minha cabeça, quando escrevi a mini-saga - ou antes, a percepção de uma narrativa maior, não concretizada, como uma sombra desfocada que paira antes e após do texto apresentado.

O terceiro é uma brincadeira com o próprio desafio, e apenas é ficção científica porque a nanotecnologia não está suficientemente desenvolvida para permitir o tipo de controlo e actuação apresentados. Dou-lhe vinte anos para se tornar mainstream...

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THE STATE OF SCIENCE FICTION, que, se formos literalíssimos e traduzirmos como «O Estado da FC» (e não a «situação», como deveria ser), incorremos no mesmo significado ambíguo que a palavra «Estado» tem em inglês: a noção da imposição política (neste caso, eventualmente mais demagógica) de um conjunto de regras estéticas defendidas por um grupo, contra as de outros grupos. Neste caso, falamos de ficção científica versus sci-fi, cuja distinção deveria separar a boa (literária, especulativa, fundamentada em princípios estéticos que foram crescendo ao longo do século XX) da má (apressada, estereotipada, recorrendo a convenções e pressupostos não fundamentados, mal escrita ao nível do estilo) ficção científica, mas que normalmente serve para distinguir a fc na forma escrita da fc na forma audiovisual.

Apesar do que Lou Anders, editor da Pyr, afirma no seu blog, o problema não está em tentar disfarçar um filme como não sendo ficção científica - esse é outro problema, mas contra este falará a vontade do público e as receitas de bilheteira. Anders cita alguns exemplos de filmes, mas o caso pode observar-se igualmente nos livros - a atitude de Margart Atwood não está longe no tempo, e mesmo recentemente David Mitchell, numa entrevista à Bloomberg TV, embora não tendo negado que Cloud Atlas seja em parte ficção cientifica (e mérito lhe seja dado), ficou nitidamente preocupado com tal categorização num canal público.

A preocupação demonstrada tem as suas raízes, por um lado na capacidade de penetração de mercado (e sejamos maduros: aqueles senhores são escritores profissionais, e preocupam-se de facto com o nível de vendas), por outro no estigma ainda hoje bem vivo da situação de gueto do género, não porque não contenha escritores excelentes e obras de mérito, mas porque os fãs que na sua inocência (alguns casos) ou imbecilidade (outros) populam as convenções vestidos como os personagens das séries televisivas retiram a seriedade à fotografia de conjunto... (outro preconceito: se nos estamos a divertir não é boa literatura - algo que debati na Cidade da Carne).

O problema mais grave é o da ficção científica não assumir a ciência de base. Como se falar e debater ciência fosse um pecado nos dias que correm. Esta mentalidade é perpetuada por shows televisivos que, embora assumindo-se como bastiões da nova FC, envolvem as convenções do género em auras de misticismo que em nada contribuem para a descodificação dos temas. Penso muito concretamente no caso do Battlestar Galactica versão século XXI, que resume-se a pegar na lenda (quase diria mito rural) da travessia do deserto pelo povo hebraico em busca da terra prometida e vesti-la com capas de ficção científica - isto talvez explique o nível de misticismo assumido (atente-se ao desenrolar dos episódios passados em Kobol na segunda série), mas não desculpa a perversão que está no centro do que entendemos por «FC».

Se a FC perde terreno para a fantasia nas livrarias e no discurso mundano, esta será sem dúvida uma das razões. A ciência perdeu um pouco do seu brilho e mistério, o que implica apenas que anda a ser mal explicada, ou mal utilizada na literatura. 

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29 Julho 2006

NÃO É TECNOFANTASIA: a tomar uma bebida imperialista americana enquanto ouço uma parte da gravação do lançamento de Jeff Vandermeer na Fnac (brevemente) e leio Martin Lake... e entre nós o gprs e um pda... ter literalmente o mundo nas mãos.

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18 Julho 2006

INJUSTAMENTE NEGLEGENCIADA, uma das obras-primas da ficção científica dos anos 80 - quando ainda era possível escrever ficção científica inovadora e de qualidade - e uma das obras exemplares da TecnoFantasia (pois é factor de indução da obra a tecnologia aplicada ao social - e como aperitivo o despertar da consciência numa inteligência artificial -, mais do que a pesquisa científica pura): Rainha dos Anjos, de Greg Bear, traduzida by yours truly no distante ano de 1992 ao mesmo tempo que a GalxMente crescia. Inicialmente para a colecção Contacto do João Barreiros, que logo seria cancelada, a tradução aguardou anos na gaveta até que tomei a iniciativa de contactar a Devir e fazer juz não só ao meu trabalho como a um livro que merecia ser conhecido. Mais do que iniciar a colecção Portal Devir, que não viu mais nenhum livro publicado, este foi o meu primeiro e grande objectivo, e nesse sentido teve sucesso. Foi preciso esperar mais um conjunto de anos até surgir a primeira crítica (extensa) ao livro na versão portuguesa. Parabéns ao «Intergalactic Robot»..

Rainha dos Anjos

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09 Junho 2006

ESTE BLOG VAI DE FÉRIAS por um bocadinho. O programa segue dentro de momentos. Ou como diziam os Pearl Jam em Lisboa, «Be Good, Stay in Love». Até Julho.

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05 Junho 2006

UMA TARDE NA FEIRA DO LIVRO que valeu essencialmente pelo convívio com a malta e por ser uma quente tarde de sábado no espaço da Feira, o único momento do ano em que o Parque Eduardo VII se torna agradável. Não se enganem: houve um autógrafo apenas em 2 horas, o que já é muito bom nos tempos que correm. Obrigado a esse leitor. Ou como costumava dizer o Macedo: «Você comprou o meu livro?! Posso pedir-lhe um autógrafo?». Acontecimento a que faço referência apenas porque o João Ventura abordou o assunto da invejável forma positiva com que encara a vida e produziu um pequeno texto, que o Rogério reproduz no seu blog.

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