Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Passatempo Kate Wilhelm

Passatempo Kate Wilhelm - 4ª semana -   |  07 Jun 2009

A Gailivro acedeu gentilmente a associar-se ao TecnoFantasia para oferecer aos leitores um conjunto de exemplares da obra premiada de Kate Wilhem, Onde os Último Pássaros Cantaram, a qual lhe valeu um Hugo nos anos 70. Abordando um tema que está a preocupar-nos mais enquanto sociedade que na época em que foi publicado - a questão da degradação ambiental aliada à exaustão dos recursos naturais do planeta -, apresenta uma visão desencantada de uma espécie que travou o processo reprodutivo e existe num estado de paragem genética, tão incapaz de se renovar quanto o ambiente em que é forçada a viver.

O passatempo consiste em responder de forma criativa aos desafios propostos durante as 4 semanas do concurso. A resposta mais interessante seria galardoada com um exemplar do livro.

1ª Semana - 06.06.2009

Em 250 palavras ou menos, os participantes tinham de descrever o impacto na sociedade, contar uma história breve, inventar uma situação anedótica/trágica, a respeito do seguinte tema:

Uma ameaça que tem pairado nas últimas décadas tem sido a do desaparecimento das reservas de petróleo e gás natural que alimentam a nossa tecnologia e sociedade. Isto porque, apesar de todo o progresso da nossa espécie, ainda não encontrámos uma fonte energética mais eficaz do que a primeira que aprendemos, há muitos e muitos anos a dominar: a combinação do oxigénio com o carbono, ou seja, o fogo. E sempre tivemos receio de ficar sem carbono suficiente para queimar. Mas... e se for o contrário? E se o planeta passar por uma quebra significativa da produção de oxigénio? E se o filoplâncton começar a deaparecer em grande volume dos nossos oceanos? E se o ar que respiramos se tornar demasiado precioso para alimentar a combustão (inclusive porque a tornaria mais difícil)?

Poderemos viver sem o nível existente de combustão mundial? Podemos encontrar formas alternativas e eficientes de energia? Podemos adaptar a nossa existência a esta dificuldade inesperada?

As entradas conseguiram apresentar uma diversidade de abordagens e traduzir a riqueza do tema. O maior desafio seria no entanto a pequenez do número de palavras, e algumas contribuições pareceram de facto esboços ou pontapés de partida para algo de maior envergadura. Ainda assim, estamos bastante satisfeitos com os resultados, e os destaques aqui evidenciados demonstram como é possível, em poucas frases, introduzir um tema complicado e analisar o impacto, não só a nível social, como a nível humano, individual, na carne. O conto vencedor exemplica-o de forma soberba, com o comedimento próprio dos momentos intensamente pessoais das grandes ficções. De referir que não pensávamos inicialmente atribuir menções honrosas, mas a qualidade das contribuições assim o obrigou.

 

Vencedor - João Silva

Farai viu o bilhete assim que entrou na sua câmara privada. Fechou a porta e despiu o fato de trabalho, arrumando a máscara respiratória com cuidado. Os recicladores de ar entraram em funcionamento de imediato, confirmando que não havia mais ninguém na câmara. Encostou-se à grande janela, virando costas às palavras que a aguardavam naquela folha de papel. A paisagem maravilhosa parecia-lhe sempre tão acessível, mesmo com todas as barreiras transparentes que encerravam a Cidade-Redoma-7.

Farai pegou no bilhete e leu as palavras que Umiin, a sua irmã mais nova, lhe deixara em jeito de testamento. Partira para se juntar a um grupo de Alteradores, o nome dado aos que acreditavam ser possível modificar o corpo humano – a qualquer custo – para eliminar a dependência do oxigénio. Farai tentara mostrar-lhe que muitos desses grupos não eram mais que suicidas e vigaristas, ou loucos na melhor das hipóteses, mas o brilho nos olhos de Umiin nunca se rendera aos seus argumentos. Tinha adiado o destino da irmã o mais que pudera, mas só conseguiria mantê-la na Redoma se a denunciasse.

Umiin fora generosa, porém, e tomara providências para que Farai não fosse prejudicada pela sua deserção. Os crimes eram punidos com cortes nas reservas de oxigénio pessoais e familiares, e por isso o bilhete dizia apenas que partira para «sufocar em liberdade», o verso preferido dos suicidas. Farai inspirou fundo, guardando nos pulmões o legado da irmã.

 

1ª Menção Honrosa - Os malefícios da hiperespecialização, por João Ventura

Era o superterrorista, animado de um ódio de morte contra a civilização tal como a conhecemos. E viu que essa civilização estava viciada em energia, pelo que a forma definitiva de a quebrar estava em cortar o fornecimento dessa energia.

Era além disso um génio da química. Com fundos provenientes de múltiplas lavagens de dinheiro, no seu laboratório secreto desenvolveu uma substância extremamente ávida de oxigénio, várias ordens de grandeza acima do que se conhecia.

Achou que no dia da inauguração da nova central térmica seria a altura apropriada para uma acção exemplar que seria a primeira de muitas que se seguiriam.

Infiltrado entre os jornalistas que iam cobrir o evento, a sua máquina fotográfica era afinal o aparelho que, uma vez activado, iria absorver o oxigénio existente no local, desta forma impedindo os queimadores de funcionar, a caldeira de produzir vapor e os alternadores de injectar a preciosa energia na rede eléctrica.

Quando accionou o seu dispositivo, o teor de oxigénio existente na atmosfera da central começou a baixar, primeiro lentamente, depois mais acentuadamente. Quando atingiu os 18 por cento, houve pessoas que começaram com tonturas, outras a desmaiar, e o fenómeno foi-se ampliando. Quando ele próprio sentiu a sua consciência a desaparecer, pensou que
não devia ter estado distraído naquela aula de biologia onde lhe parecia (agora) que o professor tinha dito que um teor de oxigénio abaixo de 15% faria perder a consciência e acarretaria a morte a curto prazo.

E enquanto no imenso hall da central se acumulavam os corpos - os funcionários da central, as autoridades vindas para a inauguração, os jornalistas - os queimadores da central continuavam alegremente a funcionar, produzindo mais fumo do que habitualmente, porque com a deficiência de oxigénio a combustão era agora mais rica, o que, como se
sabe, implica em geral maior produção de fuligem.

 

2ª Menção Honrosa - Solução 402, de Regina Catarino

Abri os olhos. Custou a lembrar-me onde estava.

A tampa de acriplex abriu-se com um silvo e sentei-me, devagar. Já tinha passado por aquilo e sabia que ficaria tonta se me sentasse demasiado depressa.

Retirei os dermoblisters que me tinham nutrido durante o sono e saí cambaleando. Alguém me segurou antes que caísse.

- Não devia ter saído sozinha ...

- Onde estará a minha família?

- Sabe os números? Procure no Directório então.

Agradecida, consultei o terminal do Directório - uma lista de todos os que se encontravam em crio-estase àquela data. Walter não constava, sinal de que estava activo. Mas Anna sim. Na mesma sala, fila G1, número 416.

Encontrei Walter junto à cápsula dela. Olhámo-nos.

- Sou congelado amanhã, Lena.

- Então ainda bem que acordei hoje. Ao menos podemos despedir-nos ...

Saímos abraçados.

 

Quando a poluição na Terra atingira níveis indescritíveis, a sobrevivência humana ficara em risco. Àquele ritmo dentro de algumas décadas o oxigénio seria insuficiente para todos. A Federação Mundial avançara então com a «Solução 402«: instalações criogénicas onde parte das pessoas ficaria em estase durante quinze anos, sendo acordadas para trocar de lugar com outras. Os activos tomariam conta dos adormecidos. Uma lotaria designaria aleatoriamente os próximos «congelados» excluindo grávidas, crianças pequenas e suas mães. As estruturas familiares tornar-se-iam temporárias visto ninguém saber quanto tempo ficaria no mesmo ciclo.

Após protestos, ataques e revoluções, a população convenceu-se finalmente de que era a única saída para a humanidade.

Viver quinze anos de cada vez.

 

 

3ª Menção Honrosa - Futuro a Vermelho, por Nuno Felício

«...dores de cabeça, náusea ou tonturas. A protecção civil continua a evacuar a população das zonas de elevado risco, acima dos mil metros, num esforço para travar o aumento do número de vítimas...» - O homem desliga o rádio e levanta-se. Outra noite sem dormir. Decide abrir a janela e respirar ar fresco e é então que estremece com o espectáculo diante de si. O rio está vermelho. Como se de sangue se tratasse, assim pensou, provavelmente por exagero dos sentidos, a margem encontra-se tingida de vermelho tanto quanto a vista ainda turva lhe permite observar e ao longo de todo o comprimento se estendem centenas de peixes mortos. Em qualquer outra altura, seria ele o primeiro a acalmar as preocupações daqueles que, certamente, se iriam encher de receio perante o mesmo cenário. Hoje, porém, é outra história. A ignorância seria agora uma virtude, ou pudesse ele fazer algo para desbloquear o processo. É agora ele quem precisa de palavras de conforto pois ele próprio, biólogo de profissão, conhece a causa deste fenómeno. Maldito complexo industrial e mais os seus despojos para o lago. São eles quem provocou este afloramento intenso de fitoplâncton e agora, que ele não se reproduz, ainda estamos para compreender porquê, está a morrer e leva com ele o resto da vida fluvial desta região. Agora ele assiste, com sensasional evidência, a uma amostra das suas consequências prácticas. É real, vejo-o. Pega no telemóvel:

- Querida?

- Sim?

- Amo-te.

 

(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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