Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Passatempo Kate Wilhelm - 4ª semana

Passatempo Kate Wilhelm - 3ª Semana -  Conto |  09 Jul 2009

A Gailivro acedeu gentilmente a associar-se ao TecnoFantasia para oferecer aos leitores um conjunto de exemplares da obra premiada de Kate Wilhem, Onde os Último Pássaros Cantaram, a qual lhe valeu um Hugo nos anos 70. Abordando um tema que está a preocupar-nos mais enquanto sociedade que na época em que foi publicado - a questão da degradação ambiental aliada à exaustão dos recursos naturais do planeta -, apresenta uma visão desencantada de uma espécie que travou o processo reprodutivo e existe num estado de paragem genética, tão incapaz de se renovar quanto o ambiente em que é forçada a viver.

O passatempo consistia em responder de forma criativa aos desafios propostos durante as 4 semanas do concurso. A resposta mais interessante seria galardoada com um exemplar do livro.

4ª Semana - 04.07.2009

O desafio da 4ª semana era o menos restritivo de todos. Convidava-se os leitores a inspirados, pelo título da obra de Kate Wilhelm, Onde os Últimos Pássaros Cantaram, apresentarem um conto, uma peça, um excerto, uma situação, que pudesse ser descrita (literal ou figurativamente) por essa frase, num máximo (não limitativo) de 500 palavras. E também deveria estar relacionado de alguma forma com o género fantástico.

O resultado consistiu num tom narrativo sobejamente diferente dos contos das semanas anteriores. As participações, talvez impelidos pela imagem simbólica do título ou por inclinação pessoal, eram de uma natureza mais lírica ou elegíaca, priveligiando o intimismo e (consequentemente?) a Fantasia. Àparte estas, outros contribuidores que haviam vencido nas semanas anteriores voltaram a participar, extra-concurso, aqui na continuação das suas abordagens anteriores.

Não obstante a pequena dimensão, este tornou-se sem dúvida num passatempo muito interessante.

Eis os resultados:

 

Vencedor - A Extinção, por Carla Ribeiro

Azul. Infinitamente profundo e intenso nos confins do céu por cima da minha cabeça. E, contudo, não é este o céu que recordo, o lugar onde, noutro tempo, os meus olhos se prenderam.

Eu lembro-me. Sei que as máquinas dos Invioláveis me alteraram as memórias e que muito daquilo em que creio é real. Eles mesmo o disseram, agora que partiram deste mundo agonizante e já não precisam de mim. Mas esta memória é minha, sei-o, e, por isso, é real. A memória dos vultos que cruzavam o céu com os seus caminhos mais ou menos erráticos, que paravam para descansar nas verdes copas das árvores que me rodeavam e que são agora apenas torsos moribundos. Lembro-me, sim, do seu canto inebriante, fascinante na facilidade com que afastava as preocupações e os pensamentos para deixar apenas um efémero sussurro de beleza.

O mundo mudou. Como poderia ter ficado igual depois que eles chegaram, escondidos na sombra das correntes que haviam tomado posse dos mais pequenos aspectos da nossa vida? Que interesse teriam eles em poupar-nos, afinal?

Começaram como pouco mais de uma sombra, uma onda que se propagava a partir dos fios eléctricos e fluía em direcção ao céu, semeando tempestades por dentro das nuvens que habitavam o céu. E depois eles vieram e eu estava aqui, involuntária criadora das forças inumanas dos Invioláveis e, sem que o soubesse, do que viria a ser a Extinção.

Naquela tarde, os pássaros cantavam e eu não via senão o céu. Haviam ainda manchas de azul, mas a cinza do dilúvio começava já a juntar-se nas esferas atmosféricas, e eu via-os, sem mais que fazer senão observar a devastação que criara. Depois eles vieram, como raios de azul safira rasgando o espaço ensombrado, e os elementos gritaram ante a presença do seu toque.

Senti-os na minha pele, enquanto se espalhavam em fúria, arrastando consigo a mais pequena partícula de vida. Séculos passaram em menos de um minuto e eu vi as árvores mirrar diante dos meus olhos, os animais tombarem como figuras de pó e a sombra do vazio dominar o planeta com o seu manto de morte. Eu, contudo, era a criadora de todos eles e não podia esperar um final tão simples. E ainda que tenha desejado com todas as minhas forças um final semelhante ao de toda a vida humana, eu, como todos os que comigo haviam criado os Invioláveis, não fui poupada ao derradeiro tormento: a escravidão indefesa.

Os anos (ou serão eras?) que decorreram, passei-os na obscuridade, incapaz de recordar sequer o local ou a forma como os meus captores nos preservaram a vida. Agora, contudo, o planeta está morto e nenhuma energia resta para saciar a fome dos Invioláveis. E, por isso, fomos devolvidos ao lugar de onde nos arrancaram, agora um mundo de destroços, de fragmentos de vida agonizante… de ruínas, como nós próprios somos. E tudo o que sabemos é que, antes de desviar deste planeta o seu olhar, a força dos Invioláveis desencadeará a última vaga da Extinção, aquela que apagará do tempo a atmosfera que nos envolve e a rocha que dorme sob os nossos pés.

- Leyra… - chama uma voz atrás de mim.

Volto-me para o olhar e vejo-o apontar para o céu. As nuvens cinzentas começam a acumular-se sobre o céu e sabemos que, dentro de escassos momentos, seremos apenas pó no vácuo intemporal.

- Devíamos despedir-nos do nosso mundo - sugere Sylvanus.

Sorrio. Eu lembro-me, afinal, do que me manteve viva na obscuridade da escravidão. Eu fora, na verdade, a criadora dos Invioláveis, mas Sylvanus fora o meu apoio, o meu braço direito, a minha força. E quando a Extinção revolvera as entranhas da vida, ele estivera ao meu lado.

- Lembras-te da primeira vez? - pergunto - Quando a Extinção revolveu os céus e a terra?

- Eu lembro-me - responde Sylvanus. - Mas já não há vozes no céu para cantarem o nosso final.

Sorrio. Como sempre, o meu companheiro compreende os meus pensamentos. Num impulso final, estendo-lhe a mão e puxo-o para os meus braços.

- Nesse caso - sussurro -, teremos de fazer cantar as vozes dentro de nós.

 

Menção Honrosa - Lágrimas (de crocodilo), por João Rogaciano

Recordo com saudade aquela pequena povoação. Os adultos viviam despreocupados e felizes. Existiam amplos espaços verdes onde as crianças brincavam e os pássaros cantavam. Era uma localidade florescente.

Esta povoação era fruto de um pequeno grupo de clones, que sobrevivera ao extermínio levado a cabo pela Federação, trezentos anos atrás. Esse pequeno grupo fugiu ao Grande Massacre e empreendera uma dolorosa fuga por montes e vales. Nesta fuga desesperada, muitos foram os que tombaram fruto de doença, cansaço ou ferimentos resultantes do confronto com elementos da Federação. Após alguns meses, chegaram a uma cadeia de montanhas aparentemente intransponível. Através de uma estreita passagem, descoberta por acaso, foram ter a um imenso e verdejante vale, rodeado pelas montanhas. Um vale perdido no tempo, onde ainda existiam plantas, aves, abelhas. Onde se viam mamíferos e roedores. Fauna e flora que noutros locais estavam extintas.

Naquele vale, longe da Federação inimiga, os clones iniciaram uma nova vida como nunca tinham conhecido: cultivaram a terra, construíram casas, começaram a reproduzir-se de forma sexuada – deixando de parte a clonagem que lhes fora imposta, à força, pela Federação. Naquele vale encantado, os clones encontraram a verdadeira felicidade.

Com a reprodução sexuada, descobriram os prazeres e os deveres de maternidade e paternidade, redescobriram as crianças – que não existiam na clonagem - e a sua forma simples de ver a vida. A esperança média de vida era de cerca de 100 anos e os membros daquela sociedade criaram uma nova ordem, onde a democracia era dominante e a liberdade um privilégio de toda a comunidade e não só de alguns. A paz era um dado adquirido.

Com o passar das gerações, o medo da Federação foi-se esbatendo. De tempos a tempos, surgia um visitante que encontrava a povoação por acaso. Esse viandante ficava de tal forma encantado, que ficava a viver integrado naquela sociedade. Deste modo se passaram 300 anos.

Agora, esta florescente e bela povoação e os seus habitantes deixaram de existir. O vale verdejante foi incinerado. As pessoas foram completamente exterminados. Ali, onde os últimos pássaros cantaram e onde o riso das crianças se fez ouvir, só existe o silêncio. A tão temida Federação encontrara-os finalmente, após três séculos de demanda. Depois, bastou infiltrarem um dos seus agentes naquela sociedade e coordenarem com ele o massacre.

É pena! Começara a afeiçoar-me aquela forma de vida. Até já gostava do riso das crianças. Mas enfim, a Federação é quem manda…

- Federação, - gritei para o dispositivo de comunicações do meu veiculo espacial – aqui agente infiltrado X3679. Missão cumprida. Rebeldes aniquilados. Vou retirar-me.

E saí dali, daquela terra. Antes verdejante, agora queimada. Antes viva, agora morta.

Recordo com saudade aquele vale, onde os últimos pássaros cantaram.

 

Menção Honrosa - Onde os últimos pássaros cantaram, por Filipe Costa

Há muito tempo atrás, antes da Era dos Homens e dos outros animais, antes da Terra ser redonda, antes dos continentes e dos oceanos, antes da neve e da chuva, antes do Sol e das estrelas e das quatro estações do ano, os Pássaros habitavam no nosso mundo. Naquela época, eles tinham asas e bicos e penas coloridas, tal como hoje, e uns voavam bem alto no céu enquanto outros nadavam à superfície da água ou aninhavam-se entre as flores e os troncos das árvores. Para além disso, falavam: não a nossa linguagem, uma muito mais antiga e elegante, declamada como um poema, usando palavras incompreensíveis para nós de tão inteligíveis que eram.

Também costumavam cantar nessa língua: quando o faziam, à sombra da Árvore Mãe do Vale, uma árvore velha e sagrada geradora de todas as formas de vida existentes, as restantes criaturas paravam para os escutar, e os seres que sobreviveram até aos dias de hoje ainda concordam em como aquela era a mais bela sonoridade que algum dia a Natureza produziu. Só que alguns Pássaros eram demasiado orgulhosos, e rapidamente surgiu a ideia de que sendo eles as criaturas mais bonitas, inteligentes e eruditas, não deviam misturar-se com as outras raças e partilhar com elas a melodia celestial das suas canções. Por isso, assim que ouviram um qualquer deus inferior falar de um local escondido que ficava muito longe dali e que nunca ninguém tinha alcançado, de uma planície secreta onde a relva era ainda mais verde e a água mais azul, foram abandonando aos poucos a Árvore Mãe e os restantes lugares que habitavam, e voaram para sul, para o único local digno das suas vozes serem ouvidas e admiradas.

Quando os últimos Pássaros se deixaram convencer e por fim partiram também, a Árvore Mãe avisou-os, entristecida, de que quando quisessem voltar àquele que era o seu ninho, ao Vale das suas origens, já podia ser tarde de mais. Mas eles não acreditavam que iram querer voltar. Porque regressariam eles do lugar mais perfeito do mundo, para onde tantos Pássaros tinham ido já sem que nenhum se tivesse arrependido? E assim seguiram durante dias e noites a fio o pequeno deus que os guiava, de barba dourada, olhos negros e roupas prateadas, até vislumbrarem uma grande cratera desenhada no solo. Então, mergulharam a pique e chamaram pelo seu nome, tal como o deus os tinha ensinado. E após a escuridão envolvente encontraram simplesmente uma extensa gruta iluminada pela luz do fogo, aparentemente deserta, a não ser uma estátua duma ave escura que se encontrava no centro. Seria aquele o local maravilhoso que tinha atraído centenas de Pássaros que não mais tinham voltado?

Foi-lhes ordenado que começassem a cantar. «Cantem! – disse uma voz perdida algures – Espalhem a vossa melodia por este magnífico lugar, e verão com os vossos próprios olhos a magia que está prestes a acontecer!». E eles cantaram. Cantaram o melhor que podiam, virados para a estátua, durante muito tempo. Cantaram até o espaço à sua volta se encher de branco, que era a cor das palavras, pensamentos e emoções que entoavam. Cantaram músicas sem parar, até não terem mais voz, pois aquela era a sua última vez… e, quando se aperceberam, já as suas vozes tinham sido roubadas e trancadas a sete chaves no túmulo que a negra estátua escondia debaixo de si! Quiseram invocar a sua linguagem, mas ali, longe do Vale onde residia a sua identidade, onde tinham aprendido e aperfeiçoado aquela que era a sua melhor arte, as suas forças eram escassas, e cedo perceberam que os segredos da sua língua também não mais lhes pertenciam.

Por cima deles, a cratera começou a fechar-se lentamente. Nem todos conseguiram sair a tempo, mas os mais rápidos ainda voltaram à superfície e regressaram, irados e desgastados, novamente para o seu Vale. Não compreendiam como é que a cobiça podia ter levado um deus tão invejoso a conspirar contra a sua espécie para roubar e aprisionar algo de tão bonito. Não compreendiam em primeiro lugar como é que a sua própria espécie tinha sido tão cega e orgulhosa ao ponto de não quererem, também eles, partilhar as purezas das suas vozes… a espécie da qual eles eram agora os únicos sobreviventes.

A Árvore Mãe devolveu-lhes a voz, mas não a fala. Não precisavam de lhe explicar o que tinha acontecido, ela simplesmente sabia. Limitaram-se a fazer-lhe uma vénia e a chorar com ela, arrependidos. O choro de quem tinha virado às costas à sua Terra, à sua Família, às suas Origens. O choro de quem tinha achado que conseguia viver esquecendo-se de quem era, da sua verdadeira identidade e de todos os que a ajudaram a forjá-la. «De agora em diante, poderão piar sempre que quiserem cantar» – explicou-lhes a Árvore Mãe – «Mas para recuperarem a vossa fala e a vossa linguagem, só voltando ao local onde cantaram pela última vez e conquistando-as de volta é que poderão ser novamente dignos de as merecerem».

E desde então, as aves vão procurando o local onde a cratera se fechou definitivamente. E piam, sobretudo na época em que as árvores crescem, as flores florescem e os campos se vestem de verde, lembrando-se dos dias que passavam à sombra da Árvore Mãe a falar e a cantar. Piam nessa altura porque estão em busca do local onde os últimos Pássaros cantaram, e chamam pelo seu nome, como o deus lhes tinha ensinado. O local que era conhecido pelo nome de…. Primavera.

 

Extra-concurso - O Fim (Onde os Últimos Pássaros Cantaram), por João Ventura

Reclinado na sua poltrona ajustável, o construtor de pássaros ouvia, deliciado, o rouxinol. Era a última criação que tinha saído das suas mãos, o movimento reproduzindo fielmente os filmes 3-D que tinha recuperado dos arquivos do Universal Geographic, os sons reconstruídos a partir da fonoteca de um ornitólogo há muito falecido.

Levantou a mão e a ave voou do poleiro onde estava até pousar no seu dedo indicador. Com a outra mão, acariciou-lhe as penas da cabeça e depois de uns segundos, fê-la voar de volta ao poleiro.

No outro extremo da sala os periquitos brincavam na gaiola, enquanto o papagaio se pendurava do poleiro, de cabeça para baixo, emitindo sons roucos.

Todas estas aves constituíam o produto mais sofisticado da ciência robótica e tinham sido fabricadas por ele, provavelmente o último investigador desta área do conhecimento ainda vivo.

O homem suspirou profundamente, ligou um projector e na parede começou a passar um filme com luxuriantes paisagens de florestas tropicais, uma explosão de vida colorida, vegetação, aves, mamíferos, o mundo vivo em todo o seu esplendor.

Comandou a poltrona para uma massagem relaxante e foi lentamente deslizando para um sono tranquilo, enquanto os seus olhos se fechavam sobre imagens da Amazónia...

--oOo--

O que despertou o construtor de pássaros foi o silêncio. Levantou-se de um salto. O rouxinol estava caído no chão, imóvel. Os periquitos no chão da gaiola. O papagaio, suspenso da corrente que o prendia ao poleiro, rodava lentamente na corrente de ar causada pelos ventiladores.

Colocou o rouxinol na gaveta do analisador multi-funções, executou uma tomografia e passou depois a utilizar a nanosonda até as suas dúvidas se dissiparem completamente: um vírus inorgânico tinha entrado na casa.

Desenvolvidos por militares para a desactivação de equipamento inimigo, o que era conseguido através da destruição de ligações atómicas nos materiais de que esse equipamento era feito, tinham a dada altura escapado ao controlo do laboratório que os produzia.

E a protecção dada pelos nanofiltros que blindavam a casa tinha-se revelado uma ficção.

--oOo--

O construtor de pássaros accionou as janelas da casa. Várias zonas da parede ficaram transparentes, e ele olhou longamente o exterior. Construída no alto de uma colina outrora arborizada, todo o terreno em volta estava agora seco, calcinado, e um vento persistente fazia rolar nuvens de poeira. Ao longe distinguia-se a auto-estrada, ainda cheia com as carcaças dos carros que lá tinham ficado quando o vírus inorgânico se tinha espalhado.

O homem tornou novamente as paredes opacas, foi ao painel de comando da casa e desactivou os nanofiltros. A casa exigiu-lhe duas vezes a password antes de executar a ordem.

Sentou-se na poltrona, imaginando a sopa química e bacteriológica que era a atmosfera exterior a entrar lentamente na casa. Ligou novamente o filme que vira na noite anterior. E enquanto observava um bando de macacos saltando de ramo em ramo numa floresta do Bornéu, pensava que se o processo se arrastasse muito, a poltrona tinha um kit de ajuda ao suicídio que podia ser utilizado em qualquer momento.

 

Extra-concurso - A Plangência dos Anjos por Ricardo Silva

Três figuras contemplavam, à distância, o que outrora fora uma orgulhosa cidade. Agora era apenas um monumento apocalíptico, vítima do paroxismo de insanidade humana.

Eles eram os «resquícios» da loucura dum poderoso magnata. Foram criados à sua imagem para servirem os seus sádicos intentos. Tal como Caim, mataram o irmão – que ao mesmo tempo era o próprio Criador –, só que este pecado não fora motivado pela filáucia que é apanágio do Homem. Mataram para sobreviver.

Eram sete quanto escaparam do complexo. Estavam exultantes com o prospecto de uma nova vida, mas depressa os sonhos estilhaçaram, revelando uma pungente visão. Saíram dum Inferno para se depararem com outro, mais amplo, nimiamente cruel, incomensuravelmente gratuito. Chamas lambiam os edifícios, projécteis cortavam o ar, uma dissonância de gritos e explosões repercutia-se continuamente por todo o espaço.

Percorreram esta nova realidade, tentando escapar à demência que a impregnava. Perderam dois companheiros e a morte de ambos foi sentida pelos restantes, uma dor tão excruciante que quase os atirou para o abismo do desespero.

Pouco a pouco ficaram a conhecer as razões da Queda. Tudo começou com um distúrbio económico, daí despontaram inúmeros despedimentos, uma vaga de suicídios, protestos, sublevações, mortes… E das cinzas ascendeu uma proposta retorcida a fim de restabelecer o equilíbrio na balança: Reality Death Concerto, facções de clones que lutavam entre si num ignominioso espectáculo televisivo para o consumo das massas. Claro que havia outros propósitos por detrás desta iniciativa. Um grupo de peritos da robótica usou estas batalhas para recolher dados de combate, usando-os subsequentemente na programação de máquinas de grande poder bélico. Estas máquinas substituíram as Forças Réplica no combate à criminalidade e foram usadas sobremaneira na mitigação das insurreições.

Gradualmente as coisas pareceram amainar, mas era somente a calma antes da tormenta. Berial, um vírus altamente letal e de origem desconhecida, envolveu o mundo com a sua pestilência. Este surto epidémico começou a devorar a humanidade com uma avidez inexorável.

Uma vacina foi desenvolvida, os resultados, porém, não foram os esperados: o efeito benigno era efémero. O enfermo era obrigado a tomar a vacina com periodicidade, caso contrário sucumbiria. E daqui resultou uma tempestuosa altercação entre classes, impulsionada pela monopolização da cura.

Por todas as nações rebentaram revoltas que invariavelmente culminaram em sangue. A humanidade declinou para a absoluta insanidade. O axioma era: «Se vamos morrer, porque não aproveitar o que nos resta da vida?». Os cinco companheiros ficaram horrorizados com este capítulo – final? – da história humana. Mas não desistiram de lutar. Estoicamente decidiram enfrentar as adversidades e fugir da babel infernal. No caminho para a liberdade tiveram que matar, enfrentaram perniciosas máquinas assassinas, choraram e sentiram a morte de mais dois irmãos. No fim, os restantes intrépidos conseguiram escapar e encontraram um último poiso idílico.

Longe do horror, com os rostos sujos de sangue e suor, os três sobreviventes observavam as ruínas fumegantes da grande metrópole. Encontravam-se parados, num campo de rosas vermelhas, num silêncio reverente em nome dos que pereceram. O alegre chilrear de pássaros despertou-lhes a atenção. Olharam para o céu e viram um bando de aves num voo ocioso. Ao mesmo tempo repararam em diversos pontos de um brilho dourado que progressivamente aumentava. Não eram estrelas, era sim outra das criações do Homem, a mais destrutiva de todas. O derradeiro coup de grâce descia dos céus.

Deitaram-se sobre as rosas, fecharam os olhos e sonharam uma última vez. No sonho eram seres alados, e em uníssono entoaram uma melodia serena e ao mesmo tempo tétrica: um Requiem para os inocentes.

(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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