Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Passatempo Kate Wilhelm - 3ª Semana

Passatempo Kate Wilhelm - 4ª semana -  Conto |  01 Jul 2009

A Gailivro acedeu gentilmente a associar-se ao TecnoFantasia para oferecer aos leitores um conjunto de exemplares da obra premiada de Kate Wilhem, Onde os Último Pássaros Cantaram, a qual lhe valeu um Hugo nos anos 70. Abordando um tema que está a preocupar-nos mais enquanto sociedade que na época em que foi publicado - a questão da degradação ambiental aliada à exaustão dos recursos naturais do planeta -, apresenta uma visão desencantada de uma espécie que travou o processo reprodutivo e existe num estado de paragem genética, tão incapaz de se renovar quanto o ambiente em que é forçada a viver.

O passatempo consistia em responder de forma criativa aos desafios propostos durante as 4 semanas do concurso. A resposta mais interessante seria galardoada com um exemplar do livro.

3ª Semana - 27.06.2009

O desafio da 3ª semana consistiu na descrição de uma cena de conflito entre dois grupos de clones distintos. Este conflito podia assumir uma qualquer natureza, desde a bélica assumida até à emocional, e portanto os grupos de clones podiam ser exércitos, familiares, vizinhos... Os clones são telepatas e conseguem comunicar (não necessariamente de forma verbal) sem usar a fala, mas cada conjunto de clones apenas consegue falar com o seu. A intenção literária era de espelhar o conflito entre dois seres - dois indivíduos - multiplicado pelos vários em que se divide.

Contudo, sugerimos uma dificuldade acrescida (que desta vez era opcional): imaginar que descreviam esta cena como se decorresse num palco ou num ecrã. Uma cena sem falas, apenas com actos, gestos, olhares, expressões. Embora um diálogo vivo ocorra na mente de todos aqueles seres, nós, como espectadores, apenas observamos o resultado. Talvez não seja possivel compreender a razão do conflito. Talvez não seja possível determinar um vencedor. Mas haverá contendas, drama, vitórias, um fluxo dramático - será possível tirar-se dali uma história, como afinal se os clones fossem animais e nós assistissemos a um documentário sobre a Natureza.

Eis os resultados:

Vencedor - Pantomima Obnubilada numa Intempérie Carmesim, por Ricardo Silva

Madrugada. O céu é um manto vermelho escuro. Os corpos continuam a amontoar-se às dezenas no solo poeirento. Fiadas de soldados apontam as armas com precisão simétrica e disparam contra os adversários, o estouro que se segue é o arauto da morte. As munições utilizadas por ambas as facções cortam a carne com uma facilidade impressionante. Reparem como eles são desmembrados, as expressões colectivas de dor, o desespero partilhado telepaticamente. O fardo que estas facções antagónicas carregam é também a sua maior arma: pensamento colectivo, absoluta unidade. Ao mesmo tempo que contemplamos este massacre em câmara lenta ouvimos a Ária da Quarta Corda de Bach, atribuindo assim um toque poético à cena, não obstante ser uma tragédia sem elegia.

 

Um mero espectador deste festival operatico de gritos, explosões e de metal a despedaçar carne, poderá abanar a cabeça e comentar: Que desperdício de dinheiro. Dinheiro, o vil metal, a raiz do mal, será mesmo o causador desta querela de proporções dantescas? Uns clamam «Pax in Nomine Domini», outros aplaudem entusiasticamente e comem pipocas pois para eles isto é entretenimento, depois ainda há aqueles que estão demasiado viciados em Phantasia – a droga escapista que todos os dias cria autistas pelo mundo fora – e encontram-se totalmente desligados da realidade. A maior parte partilha um pensamento em comum: os clones são produtos dispensáveis. Mas a clonagem envolve custos: empresas militares como a Vitae Veritas tiveram prejuízos que atingiram a «marca vermelha», e, na sequência destas derrapagens orçamentais acabaram por falir. Mas observemos o desenrolar da batalha.

 

O exército vermelho de Holst abre caminho por entre as linhas inimigas. Milhares morreram, mais morrerão. As limitadas unidades equipadas com Armaduras Blindadas de Combate enfrentam em campo aberto os Exosqueletos de Metal Reforçado do exército azul de Ciel.

 

O grupo Vexa de Holst aproveita a confusão para se aproximar da fortaleza piramidal de Ciel, infiltrar-se e destruí-la. Vexa, composto por dez clones, avança com circunspecção através duma depressão elíptica, armas a postos. Ao subirem o terreno surpreendem um grupo de soldados inimigos, as armas são apontadas, um premir simultâneo do gatilho, concerto balístico, os alvos tombam. Avançam em fila por uma trincheira e chegam à face lateral da fortaleza de Ciel. Começam a subir as escadas de metal gravadas na superfície inclinada. O grupo chega ao topo e depara-se com o aerodrone AL – 209, uma sentinela equipada com uma minigun em cada asa. Os clones preparam o lança rockets de fusão mas AL – 209 já começou a descarregar as balas. Morrem todos excepto um, que resvala pela fortaleza abaixo. O clone estatela-se no chão árido, os seus lamentos abafados pelo caos da batalha. Num acto de loucura arranca os próprios olhos qual Édipo atormentado.    

 

Está na natureza humana atribuir uma óptica maniqueísta a conflitos diametralmente opostos. Como humanos também temos uma propensão para errar e este retrato sanguinolento mostra que talvez o nosso futuro militar/económico não resida na clonagem mas sim no desenvolvimento de máquinas capazes de processar cálculos frios e peremptórios. Máquinas que não chorem.

 

Extra-concurso - O Dia da Comunidade, por João Ventura

O enorme Pavilhão Alpha encontrava-se repleto. Aquele evento, repetido anualmente, comemorava o início da Comunidade Alpha.

 

Uma onda telepática percorreu a audiência, aumentando de intensidade quando o palco, no centro do enorme recinto, ficou subitamente inundado de luz.

 

A atenção de todos concentrou-se na zona iluminada, embora todos já conhecessem a acção que ali se iria desenrolar.

 

Quatro grupos de clones com características fisionómicas perfeitamente distintas, ocupavam o palco: os alpha, brancos, louros, quase albinos; os black, pele escura, cabelo encaracolado, que dois séculos antes se designariam como de etnia africana; os china, olhos amendoados, cabelo preto e liso, de pequena estatura, e os blend, todos iguais entre si, como clones que eram, mas com características resultantes de uma mistura genética efectuada sobre as populações originais antes da clonagem. Exceptuando os alpha, os outros eram produzidos especialmente para aquele evento.

 

O som de um tambor começou a ouvir-se, primeiro em surdina, depois cada vez mais forte, e um ambiente de tensão surge e cresce, centrado no palco. Uma situação de conflito nasce entre os quatro grupos, que se agudiza e atenua entre eles de forma quase aleatória, como se alianças se formassem e desfizessem. A postura dos actores torna-se mais ameaçadora e subitamente o grupo dos blend sofre um ataque conjunto dos outros três. alpha, black e china envolvem os blend e começam a agredi-los a soco e pontapé. Durante uns minutos é uma confusão no palco, e quando os três grupos se afastam, no meio do palco só estão os corpos dos blend, em monte, muitos deles em posições distorcidas. Soa uma buzina e entra no palco uma brigada de de robôs de limpeza que deitam os corpos para um contentor que trouxeram e a seguir saem do palco com a sua carga macabra.

 

Novamente o tambor em crescendo, misturado agora com instrumentos de cordas, o som agressivo dos violinos e violoncelos quase arranhando a coluna vertebral. É o prelúdio para uma nova batalha no palco, mas agora são os alpha e os china contra os black, e já são utilizadas armas brancas, e quando o conflito termina são só corpos escuros no centro do palco, e chegam novamente os robôs da limpeza que levam os corpos e lavam o piso do sangue derramado.

 

Terceiro e último acto: tambores e metais, a sonoridade das trompas, dos trombones e trompetes cria uma atmosfera apoteótica de conflito final. A guerra é agora entre os alpha e os china, mas é uma confrontação mais sofisticada, embora não menos letal. Os dois grupos enfrentam-se enviando projecções mentais agressivas, e pouco a pouco os china cedem e um a um, vão caindo no chão onde ficam imóveis.

 

A música atinge o climax, e enquanto os robôs vêm de novo proceder à limpeza, os actores alpha saem do palco saem do palco e misturam-se com a audiência que nesta altura vibra, aplaude, grita, é  uma euforia colectiva.

 

Alpha 13274, um dos espectadores, enquanto aplaude como todos os outros, passeia os olhos pelos milhares de faces, todas iguais à sua, a mesma pele branca, o mesmo cabelo louro, e num pequeno canto da sua mente surge uma dúvida, insidiosa, subversiva, que ele rapidamente afasta do campo da consciência, porque numa sociedade de telepatas nunca se sabe se (quando) alguém nos está a ler: «Não seria possível ter sido de outra forma? Não teria sido possível a evolução na coexistência pacífica das diversas espécies clonadas?»

 

A história que lhe ensinaram diz-lhe que não, que a supremacia dos alpha tinha que resultar na eliminação dos outros, mas aquela dúvida não morre, e tende a aparecer nas situações mais inconvenientes...

(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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