Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


16 Maio 2010

A Recomendação De Hoje destina-se, não aos leitores mas aos editores, para que se foquem no recente galardoado com o prémio Nébula para melhor romance de 2008: Paolo Bacigalupi.

Como já aqui dissemos, Bacigalupi é uma das grandes revelações da FC dos últimos tempos: detentor de uma prosa directa e eficiente, e de um olhar de lince perante o mundo inventado (leia-se: descrevendo o que interessa e o que serve ao propósito da história, sem excessos nem gorduras), é também imbuído de uma consciência política e social (leia-se: tem opiniões), e procura encontrar narrativas que traduzam esse desconforto perante a realidade e o presente (leia-se: não se limita a introduzir vampiros nem zombies para efeito de choque ou estranhamento em comunidades cujos estilos de vida carecem de verdadeiras provações e dificuldades).

The Windup Girl é a consolidação, em forma de romance, de um mundo e uma mensagem que tem vindo a ser explorado em contos como «The Calorie Man» e «Yellow-Card Man» (online): o que resta da nossa civilização tecno-globalizada após termos consumido a última gota de petróleo e a procura de energia (de «calorias») se torne no objectivo individual de vida, igual ao que a procura de dinheiro representava na era anterior. O mapa político global transformou-se (com o desaparecimento dos Estados Unidos), pelo que o foco do enredo se desloca para o oriente, em particular para a Tailândia, aqui descrita com a pertinência tecnológica que Gibson utilizou para o seu Japão cibernético. Além dos problemas energéticos, o planeta vê-se confrontado com os resultados da engenharia genética utilizada para fins militares e terroristas.

The Windup Girl conseguiria, creio, ser apresentado no nosso mercado enquanto fábula ecológica, dando particular ênfase ao esgotamento do petróleo e à alteração da realidade política. Alguns comentadores da praça poderiam apreciar a natureza do livro, em particular conhecendo a apetência dos mesmos para a FC. Ficção especulativa para gente inteligente.

Bem, fica a proposta.

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14 Maio 2010

A Decisão Inesperada de prolongar a Feira do Livro por mais uma semana – imagino os impactos nos custos adicionais com pessoal e de sacrifício horário que terá nas editoras, em particular nas pequenas – não compensa as más decisões efectuadas e um desconsolo generalizado com o evento que se instalou este ano. Será sem dúvida factor clima; será desânimo pela economia e pela bela notícia de aumento dos impostos, como se isso resolvesse a nossa fraca competitividade internacional. Por vezes, é preciso simplesmente deixar ir e ansiar por um retorno em melhor forma – sim, e também falo da Nação...

Tem sido um percurso interessante, o nosso, nos últimos dias por um conjunto de obras, vulgo recomendações, que possam ajudar a vossa decisão diária de compras. Principalmente, chamar a atenção para edições antigas que se encontram ainda disponíveis. Não entendo a facilidade com que se descartam obras da memória passados meses ou poucos anos; não aceito que as críticas se centrem apenas em novidades. O mundo não nasceu há cinco minutos. E se se limitam a ler quem poucos anos se vos adianta em idade, garanto-vos que não aprendem nada.

É, contudo, um percurso cansativo e outros afazeres urgem. A promessa de continuar até dia 16 será mantida, mas após essa data ainda haverá que ponderar. Não está de parte uma possível recomendação ou outra. Em particular, por que nos últimos dias pretendia regressar ao presente e oferecer algumas orientações para livros recentes. Nem sempre véu, nem sempre espartilho. Mas sem compromissos, desta feita. Aquilo que empresarialmente se considera numa base de best effort (adoramos a língua inglesa no nosso mundo empresarial; e no nosso científico também, a bem dizer).

A recomendação de hoje recupera uma delícia de 1992, um livrinho curto da autoria de Alan Lightman: Os Sonhos de Einstein. Foi publicado pela Asa numa daquelas colecções de Literatura em formato pequeno. Os Sonhos de Einstein trata de uma especulação inteligente e sensível sobre os sonhos que Einstein teria experimentado enquanto concebia a teoria da relatividade (mais centrados nos efeitos da especial que da geral). Sonhos de mundos e situações alternativas, em que o tempo não se comporta conforme o conhecemos. O efeito aproxima-se bastante de um ensaio sobre experiências com o tempo, mas com a particularidade de cada situação, cada novo mundo, serem apresentados em termos humanos - ou seja, Ficção Científica.

Temos assim, um mundo em que o tempo retrocede, ao invés de avançar; em que avança aos saltos, de forma discreta; em que efeitos não se sucedem necessariamente às causas; em que a mesma povoação coexiste em diferentes eras do passado; em que a dilatação temporal derivada da aproximação à velocidde da luz manifesta-se a velocidades humanas (ou seja, a velocidade da luz é extremamente reduzida), pelo que toda a gente corre para todo o lado, de forma a viver o mais tempo possível. E se a vida eterna for uma realidade, qual será a sua atitude no dia-a-dia: pertence aos Já's, que querem despachar tarefas rapidamente para estarem sempre prontos, ou aos Deixa Para Mais Tarde, por que, afinal, têm todo o tempo do universo para as realizar?

Os capítulos sucedem-se de forma breve, quase em forma de conto de fadas, pequenas alegorias do tempo entrecortadas com instantâneos da história de vida do famoso cientista. Tem o sabor de uma colectânea de fábulas, misto de infância e ciência. Existe, em particular, uma cena na qual um casal de amantes se separa por que o instante de interrupção temporal, mesmo sendo imperceptível, foi o suficiente para causar dúvida e não os deixar arriscar novamente.

É um livro apropriado para a mesa-de-cabeceira e foi sem dúvida uma excelente escolha do editor. Mas é FC pura e dura, com extrapolação científica e um belíssimo ouvido para a prosa. Apenas não se chama FC...

Fica o desejo de que desperte sonhos tão ou mais atraentes que os de Einstein.

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13 Maio 2010

De Tão Habituado Às Edições dispersas pelos anos e pelas casas editoras e que jamais se renovam, é difícil para um empedernido entusiasta português de Ficção Científica aperceber-se da quantidade de obras que se encontram ainda disponíveis para quem tenha chegado recentemente ao género e conheça essencialmente o trabalho da Saída de Emergência e Gailivro. Sem dúvida que no nosso tempo não existia esta oferta, a não ser que se procurassem números antigos das colecções já mencionadas ou que se vasculhasse nos recantos dos alfarrabistas: a Panorama e a DH haviam terminado há tempo suficiente para desaparecerem do radar, e só a vertente brasileira – nomeadamente a editora Hemus, responsável pela tradução em português da Fundação asimoviana antes do trabalho da Livros do Brasil com a Argonauta Gigante – conseguia acrescentar uma oferta paralela.

Hoje, ao percorrer a gélida temperança da Feira, nesta maldita antecipação do evento face ao calendário primaveril (será que os senhores editores responsáveis pela ideia passam o tempo suficiente no Parque Eduardo VII?), ocorreu-me a extensão da oferta para os jovens. Pois, afinal, não só estão disponíveis dezenas de números das principais colecções dos anos 80/90 já citadas (Livros de Bolso FC e Argonauta), como se podem ainda encontrar restos de edições igualmente antigas, como fósseis de uma antiga glória. E entre os ditos fósseis, surge ocasionalmente o antepassado primordial de um novo filo, uma obra de referência que se pensava estar apenas disponível na língua-mãe, mas que, surpresa!, por poucos euros pode saltar para o nosso colo a falar bom lusitano.

É este o caso de Mais Que Humanos, de Theodore Sturgeon, na edição mais recente da Presença, que a editora fez o favor de colocar fora das colecções do Fantástico, juntamente com os clássicos da literatura – uma demonstração apreciada de respeito mas que sem dúvida alienou o público-alvo (na Feira, o pavilhão em que se encontra é inclusive separado). Ou, continuando ainda nesta editora, temos os casos pontuais de Schismatrix – O Mundo Pós-Humano de Bruce Sterling, Samurai: Nome de Código de Neal Stephenson, A Mão Esquerda das Trevas de Ursula Le Guin, A Guerra da Evolução de Neil Asher, e outros grandes títulos, trazidos à luz na colecção Viajantes do Tempo, que, é bom lembrar, prometia novos mundos ao mundo no ano distante de 2003, quando teve início, antes de se render aos livros fáceis destinados aos muito jovens.

Mas não é caso isolado. Avançando na profundidade do tempo, chegamos ao pavilhão da Gradiva, onde um Neuromante insuspeito nos sorri ao canto da lateral que contém os saldos. Eis um exemplo gritante de uma grande obra, uma obra que inspirou gerações de programadores e criadores de mundos virtuais, que esteve na origem de um movimento ciberartístico, culminando – se tal se pode afirmar – no filme Matrix; e em português encontra-se ignorada, atirada para um canto, abandonada para morrer.

Lembro-me bem do instante em que vi a edição nacional pela primeira vez. Era também Feira do Livro, mas de concelho, e acabara de ser publicada. Em capa dura, como era apanágio da colecção Contacto e como só o João Barreiros teria coragem e devoção para arriscar. Subsistindo ainda da mesada, atirei a cautela às favas e trouxe o livro comigo (os livros de capa dura não eram, como não são, baratos). Era impossível não trazê-lo. Era impossivel ignorar aquele prazer da descoberta, como se me fosse revelado um segredo há muito aguardado. Por vezes, conhecer o plano editorial vindouro tira a graça à descoberta. A edição foi uma surpresa completa, e encontrá-la, após tantas referências sobre o romance mas sem dispor da Amazon nem compras no estrangeiro naquela época de pré-História assalariada, foi o equivalente de receber uma prenda inesperada ou presenciar um acto divino. Como vos disse, ainda me lembro desse momento, volvidos 23 anos.

Com tradução razoavelmente competente de Fernando Correia Marques, o romance mergulha-nos na história de Case e Molly, o par de improváveis mercenários do mundo virtual e das correntes de dados, contratados para descobrir segredos empresariais escondidos nos centros de informação das grandes corporações. Deles é um mundo adjacente ao nosso mas apenas visível para quem dispuser da interface correcta. Quem se prestar a ceder partes da carne e da alma, partes de si mesmo, para convergir num novo ser, uno com as máquinas.

A narrativa decorre num Japão ultra-modernizado e na costa leste dos Estados Unidos. A missão para a qual Case se deixa seduzir – e cujo prémio consiste na recuperação da interface do seu sistema nervoso central, destruido no decurso de um trabalho anterior que deu para o torto – consiste inicialmente na descoberta da natureza de uma poderosa inteligência artificial (I.A.) de nome Wintermute, mas em breve se revela mais complexa e ilegal do que isso. Wintermute foi criada e é mantida por uma família de elite, quase à margem da lei, que impede a existência de I.A.s demasiado complexas, e que foi programada com um desejo irreconciliável de se fundir com o gémeo Neuromante e tornar-se numa magnum I.A. como nunca visto. Case e Molly, se quiserem libertar-se das dependências da vida nas ruas e tornar-se cidadãos com um futuro íntegro, terão de ajudar Wintermute a alcançar o objectivo. Ou – como não podia deixar de ser – morrer a tentar...

O enredo não é efectivamente o ponto forte do livro, nem o motivo da sua originalidade. Apesar da acção, do perigo eminente e das reviravoltas surpreendentes, não há uma sensação de revelação contínua e ansiosa que nos prenda – ou pelo menos, não foi essa a minha experiência. O livro é excelente pelo seu estilo.

Gibson, já o afirmei noutros sítios, devia ter escrito algures na sua carreira um romance mainstream. Talvez o tenha feito com Spook Country, muito à sua maneira, pois é um livro sobre o «presente acabado de acontecer». Precisava de ter feito poemas, muitos, além do seu «Agrippa» e da evocação dos mortos. Gibson é dotado de um estilo certeiro, de uma capacidade inata, ou talvez simplesmente trabalhada, de escolher com precisão laser e evocação poética, a correcta imagem para a situação. Sem dúvida uma das aberturas mais famosas de sempre, «O céu sobre o porto tinha a cor de uma televisão sintonizada num canal sem emissão» coloca-nos de imediato no ambiente e na proposta literária de Neuromante: a de uma ecologia tecnológica, criada por nós, mas cujo controlo renegámos há muito. Um mundo no qual as máquinas pensam e sentem e encontram-se ligadas de uma forma quase mística. É assombrosa a cena na qual Case recebe, na zona de cabinas de um espaço público,  uma chamada directa de Wintermute e, querendo fugir do mesmo, passa a correr pelas restantes cabinas telefónicas; estas, à medida que passa, vão tocando à vez, acompanhando-o. É tão simples, a cena, mas tão eficaz, na medida em que antecipa e descreve de forma sumária o terror da vigilância electrónica, ainda mero conceito naquela data.

Esta capacidade de síntese só se alcança quando se escreveu a história vezes sem fim, e se reescreveu, e escreveu ainda mais uma vez. Só quando a história é uma parte da memória do autor é que ele tem finalmente capacidade para a contar, centrando-se no que interessa e colocando de lado as frases inúteis, paradas e desinteressantes.

Eis a minha recomendação de hoje – a de um clássico indispensável já difícil de encontrar. Não a edição original em capa dura, mas um lançamento efectuado pela Gradiva algures em finais dos anos 90, em formato trade paperback, embora o conteúdo se tenha mantido inalterado.

Gostaria de incluir nas recomendações a colecção da Caminho. Infelizmente, os livros de capa azul foram convertidos em pasta de papel  - espero eu que, ao menos, os exemplares que sobravam das minhas obras tenham sido sacrificados para algo mais nobre que as compilação dos textos completos do Pedro Paixão, e outros que tais -, e não há indícios de que, nesta era em que finalmente os ombros do Fantástico sustentam tantas vendas e pagam tantos salários, a Caminho (mesmo incorporada na Leya, imagino que retenha algum grau de decisão sobre a sua estratégia empresarial), detentora de um catálogo europeu de títulos e autores de tal forma ímpar que recebeu louvores da associação britânica de FC, pretenda aproveitar a maré e lançar reedições da prata da casa.

Obras feitas e traduzidas, que seriam facilmente recuperadas, pagos os direitos novamente e lançadas no mercado. Além do facto de esta dita casa incluir autores portugueses e obras igualmente prontas a re-imprimir, de provas dadas e com historial de vendas, nem sequer precisando de dispender o esforço de pedir ao mercado textos inéditos e avaliá-los. Mesmo sendo reedições, é pouco provável que os leitores modernos tenham tido acesso ou conheçam sequer o material lançado em inícios de 90, pelo que funcionariam, para todos os efeitos, como obras (quase) jovens.

(Suspiro...)

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12 Maio 2010

É Espantosa A Marca que o tempo nos deixa. Tenho recordações mais vívidas e presentes dos primeiros dez anos de leituras de Ficção Científica que dos vinte e tais que se lhes seguiram. Posso, quase sem necessidade de folhear os livros, descrever-vos com pequena margem de erro as primeiras dezenas de títulos da Livros de Bolso FC da Europa-América.

Entendo perfeitamente que, quem tivesse crescido com a Argonauta, encarasse a Bolso FC como uma jovenzinha ainda com provas para dar; afinal, a Argonauta existia desde 1957, enquanto que a última iniciara-se, agora mesmo, com a década de 80 e ainda por cima recorrendo no número inaugural à novelização do primeiro episódio da Galáctica (da série original). Contudo, foi a Bolso FC que me apresentou o universo glorioso e infinito da Ficção Científica, qual epifania religiosa, e por isso é esta que acabo por colocar em primeiro plano. Não me admira que sejam diferentes as lealdades de quem cresceu com as colecções Via Láctea e Viajantes do Tempo da Presença; mesmo quem acompanhe mais a Bang! distinguir-se-á de quem prefira a 1001 Mundos, tendo sido marcado por temas e autores, embora próximos, com suficientes graus de separação. Sem dúvida que os editores actuais são mais participativos – fruto dos tempos. Os editores da Europa-América e da Livros do Brasil existiam atrás das fortalezas, e não tínhamos acesso às suas opiniões e preferências, a não ser quando explicavam as escolhas num texto introdutório ao livro do mês.

É natural supor que seria difícil escolher a obra a recomendar, a partir do leque de títulos que a editora foi mantendo disponíveis e reeditados, até finalmente perceber que o filão esgotara. A colecção surge ainda nas Feiras do Livro, não tão coleccionável quanto a Argonauta, mas repleta de bons e antigos exemplos de como se podia manter qualidade e baixo preço e formato de bolso num só pacote (e sim, estou perfeitamente ciente de que me refiro à empresa que anos mais tarde se tornaria sinónimo de displicência editorial). Mas, das centenas de números, há um livro que sobressai sem dificuldades.

Os Despojados – Uma Utopia Ambígua, de Ursula Le Guin, merece um destaque maior e melhor do que o espaço limitado desta recomendação. Dizer que o considero como o melhor romance de FC que conheço acaba por ser redutor, além de ser também um convite ao debate. Dizer que se trata de leitura obrigatória para qualquer aspirante a escritor, é ser minimalista. Coibi-me propositadamente do exagero «o melhor romance de FC de sempre», por que, obviamente, não li todos os romances que existem, nem nunca serei humanamente capaz de o fazer. Mas terá seguramente o meu voto para, no final dos tempos, acabar no pódio, entre os três primeiros.

Muito da afirmação acima reflecte o meu ideal de FC, e muito deste ideal deve-se precisamente a este livro. Tal como a obra, definir a FC torna-se num processo circular, taoista, que encontra na experiência passada o alimento para a era seguinte. De certa forma auto-fágico, mas em grande medida uma procura da excelência que só consegue ser obtida a partir do apuramento da raça, imune a contaminações externas.

Mas em que consiste então o melhor romance de FC que conheço?

Conta a história de Shevek, físico teórico de uma lua anarquista chamada Anarres. A lua foi colonizada há século e meio por uma comunidade de dissidentes políticos mundiais que negociaram com os governos comunistas e capitalistas do planeta-mãe (Urras) a expatriação para os territórios desérticos – mas habitáveis – do satélite em troca de, basicamente, os deixarem governar em paz. Ajudou para esse processo que Anarres fosse um lugar de sobrevivência difícil, com parcos recursos, obrigando a colónia a instituir processos de rotação de voluntariado para tarefas manuais exigentes, de forma a que o trabalho mais pesado fosse cumprido.

Não tendo o luxo de tecnologia sofisticada, Anarres é apresentado como um lugar de trabalho manual intensivo, empenhado no dever, reservando pouco espaço para o prazer do espírito e para a sofisticação intelectual. Ao mesmo tempo, é-nos dito, funciona como um organismo permanentemente exercitado, sem excessos nem gorduras nem distracções, eficiente, focado e saudável. Livre. Livre para se sentir pleno e recompensado.

Que futuro terá então um físico teórico no meio desta comunidade? A autora apresenta-nos com uma maestria excepcional a dicotomia entre trabalhador e pensador; entre mero homem representante do povo e cultura em que nasceu, e génio destinado a descobrir as leis íntimas do universo. Um equilíbrio difícil que, no final, é humano e imperfeito, e varia consoante a vontade e motivação pessoais, bem como a capacidade de aceitação do seu povo – capacidade que, ele acaba por perceber, é reduzida.

O génio precisa de outros génios com quem trocar ideias. As ideias, afirma Le Guin, são como a relva, precisam da chuva e do sol, crescem melhor quando são pisadas. Mas para encontrar esses génios, precisa de sair de Anarres. Precisa de fazer o caminho inverso do seu povo, regressar à terra da luxúria, ao pecado original. Não obstante trocas comerciais necessárias mantidas pelo sindicato, Anarres vive de costas voltadas para Urras, apelidando-o de nomes feios, nomes políticos. Se Shevek encetar a viagem, será o primeiro embaixador de Anarres em muitas décadas. E, por que estamos neste tipo de romances, Shevek viaja.

O livro mostra-se desde o início como uma história circular, alternando os capítulos da passagem por Urras com a história de vida de Shevek em Anarres até tomar essa decisão. As partes, assim misturadas, formam um todo harmonioso que não seria tão eficaz se a separação fosse linear. Além disso, contribuem para sustentar uma variante literária da parábola de Zenão, que surge a meio do livro: qualquer que seja a meta, faltará sempre metade do caminho para a atingir – metade da distância que agora a separa, e chegado a esse ponto intermédio, metade da distância entre essa metade e o final. Nunca se atinge o objectivo, afirma o paradoxo, porque faltará sempre metade da distância a percorrer, ainda que infinitesimal. Esta parábola é uma tradução das séries convergentes, um instrumento matemático que representa a infinidade. Tradução também de fenómenos físicos como a relatividade – jamais conseguiremos atingir a velocidade da luz, por que o esforço energético para adicionarmos pequenos incrementos de velocidade à nossa nave torna-se exponencial quando nos aproximamos desse limite imposto pelo universo; cair para um buraco negro resulta num fenómeno semelhante, pois o tempo estende-se até ao infinito, prolonga-se em direcção à eternidade, abrandando mas sem nunca parar, tornando a queda numa condenação eterna.

Que um livro consiga este casamento tão perfeito entre ciência, estrutura narrativa, tema e abordagem literária é sublime. É deslumbrante observar como, frase a frase, minuciosamente e sem dispender palavras desnecessárias, Le Guin consegue, em simultâneo, apresentar uma sociedade política anarquista baseada nos modelos de Kropotkin; ser adulta o suficiente para não se deixar enganar pelas suas preferências e abordar com clareza os problemas inerentes a essa pseudo-utopia (daí o título «utopia ambígua»); fazer reflectir a dualidade social na personalidade do protagonista e na sua necessidade entre perseguir um sonho ou ser um homem integrado na terra e no povo em que nasceu; explicar a sua postura em termos práticos, fugindo da solução fácil de ostentá-lo como profeta ou demagogo, mas sustentando-o firmemente na base da ciência, levando-o para Urras não como um homem de ideais mas de ideias – ideias práticas, matemáticas, demonstráveis, mais fortes que qualquer vontade ou interpretação humana; explicar a ciência, e efectivamente convertê-la, em filosofia pessoal, numa clara homenagem à interpretação do universo que a Relatividade e a Mecânica Quântica nos trouxeram; e no final, confrontar dois sistemas políticos distintos, com conjuntos de valores constrastantes, para um final necessário e lógico, circular na sua essência, ainda que possivelmente, e em certa medida, forçado.

A frase final «As mãos estavam vazias, como sempre» explicam Anarres com uma magistral economia de palavras, dando continuidade circular à frase de abertura «Havia um muro». Tudo, tudo, tudo neste romance está pensado, trabalhado, polido, encaixado. Tudo nele faz sentido. Tudo nele brilha e fica na memória.

E como se não bastasse, é uma obra com uma qualidade de prosa invulgar na FC norte-americana, e digamos mesmo, na ficção moderna de língua inglesa.

Os Despojados foi publicado em duas partes - números 46 e 47 -, na Bolso FC da Europa-América, com capas de Rui Ligeiro, e uma tradução notória de Maria Freire da Cruz, que faz juz à qualidade da obra e em alguns momentos a verte de forma impecável para a nossa língua, respeitando a intenção da autora sobre a economia e a beleza das frases. Um dos melhores momentos de sempre (aqui já o afirmo com segurança) da edição de FC em língua portuguesa. E que hoje é vendido, nas barracas da Feira do Livro, por um valor irrisório...

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11 Maio 2010

Esta Pretendia Ser uma recomendação diferente, mas a realidade, como sempre, enrola-nos e lança-nos para o lado. A imprensa divulgou ontem o falecimento de Frank Frazetta, que o João evoca especialmente no seu blogue. Desenhador de BD e ilustrador de inúmeras capas de Ficção Científica e Fantasia, com particular destaque para o trabalho que acompanharia as reedições de Tarzan e Barsoom, Frazetta tornou-se num sinónimo da imagem fantástica, repleto de heróis musculados, heroínas voluptuosas e monstros disformes no auge da batalha. De Frazetta, e que eu conheça, não existe nenhum álbum publicado em Portugal, o que espero seja corrigido brevemente. A minha recomendação segue assim o espírito e não o autor.

Fantasy Art Now é uma recente edição da Editorial Estampa organizada por Martin McKenna. Recolhe trabalhos modernos de ilustração de vários autores internacionais, que podem ter adornado capas de edições portuguesas. A organização é por temas, e as imagens surgem de forma ampla, com suficiente detalhe e destaque para uma apreciação demorada. Não dispondo neste momento do livro (trata-se de uma recomendação também para o crítico), não vos posso confirmar a lista de artistas que inclui (suponho que nenhum exemplo pela mão de Frazetta, se não surgiria destacado, seguramente, nas críticas estrangeiras) - e como não podia deixar de ser, a editora portuguesa é completamente omissa e negligente na promoção que dele faz, pelo que tenho de confiar nos sítios Web estrangeiros. Mas a edição é cuidada, os desenhos cativantes, e a Feira do Livro é uma excelente oportunidade para adquiri-lo com desconto. Em particular pelo incentivo que estarão a prestar à tradução e publicação nacional de livros sobre arte Fantástica; trata-se, afinal, de uma aposta arriscada e de um exemplo singular no nosso mercado.

Também entre nós existe uma (pequena) história de ilustrações originais para livros relacionados com o género, com particular destaque para o trabalho de Lima de Freitas na colecção Argonauta e Rui Ligeiro na Europa-América. Espero um dia poder ver uma colectânea comemorativa desses tempos esquecidos.

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Há Por Vezes Desabafos que são mais fortes do que nós e que não se conseguem evitar. Este foi um deles. Com imenso cavalheirismo, o Daniel Borba descobriu e aceitou o desafio. Resultou nesta apreciação. Poderia ter tido um resultado diferente e seria igualmente apreciado. Deixo o meu agradecimento ao Daniel, que me ajudou a comprovar que a subtileza funciona e inclusive se torna num prazer maior quando relida. O conto, como sabem, continua aqui. Qual é a vossa opinião?

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10 Maio 2010

É Impossível Deixar-Vos estas recomendações sumárias sem incluir duas das principais colecções de Ficção Científica que actualmente só se conseguem encontrar na Feira do Livro ou em algum alfarrabista: a Argonauta e a Livros de Bolso FC da Europa-América.

Para quem não tenha atravessado os anos 80, é quase impossível imaginar o domínio destas colecções. Não havia praticamente livraria que não dedicasse uma secção extensa a expor uma grande parte ou inclusive – no caso da Europa-América – a totalidade dos números publicados. Eis um grande ensinamento para as práticas modernas: ainda que hoje existam colecções – a 1001 Mundos e a Bang!, para destacar as principais –, as livrarias não se dedicam a reunir os exemplares segundo uma lógica numérica e num espaço independente, preferindo seguir as suas próprias regras de catalogação; o leitor recém-chegado à colecção sente-se naturalmente desamparado (será o livro acabado de comprar o número mais recente?) e terá de recorrer a outros recursos, como pesquisar na internet ou contactar a editora, para entender que obras constam do catálogo e mesmo do planeamento futuro. Contudo, encontrar alguns números mais antigos irá revelar-se uma tarefa frustrada, obrigando-o a comprar online – de que nem todos os leitores gostam – ou esperar por uma Feira do Livro, para completar a colecção. O facto de os títulos anteriores estarem disponíveis no momento, ou serem facilmente encontrados pela pesquisa na outra livraria mais próxima, ajudava bastante os novos leitores, acabados de chegar por via de uma novelização de um filme em cartaz, por seguirem uma recomendação pessoal, por conhecerem o autor ou por mero acaso.

O leitor ocasional era assim imediatamente fidelizado; o mercado expandia-se. Além disso, existia o factor educação: a colecção era um veículo para ir divulgando autores e obras inovadores, pois havia uma confiança por parte do editor que um segmento importante dos seguidores iriam confiar na aposta e comprar o livro – nem que fosse para ter a colecção completa. O fenómeno era fiável, e se acabou por perder ânimo foi principalmente pela falta de confiança dos editores no que eles próprios haviam ajudado a criar. Sucediam-se as más traduções e a falta de revisão. Adicionalmente começou a abusar-se do fenómeno de divisão do livro. Os leitores estavam habituados a, duas ou três vezes por ano, comprarem histórias às fatias, nas quais uma obra extensa no original era dividida em duas ou três partes na edição portuguesa para tornar a compra individual mais barata. Era uma explicação lógica, e quem vivia da mesada agradecia. Implicava que se conheceriam menos romances e autores naquele ano, pois um dos números previstos seria uma segunda ou uma terceira parte, mas enquanto as metades eram gordinhas em número de páginas havia um pacto entre editor e leitor. Esse pacto começou a quebrar-se quando as metades se tornaram esquálidas e se começou a perceber que o editor pretendia obter o maior lucro possível de cada título comprado.

Era o sinal de que o modelo de livro de bolso se tinha esgotado. E se os leitores ocasionais já tinham desaparecido há muito, esta mudança de atitude alienou os fiéis. A cisão tornou-se irreconciliável.

Ainda assim, muitas obras, boas obras, se publicaram nos tempos áureos. Irei destacar duas, uma de cada colecção.

O Tempo, O Espaço e o Cérebro é a tradução idiota do título The Big Time, um dos melhores livros de Fritz Leiber e dos poucos a encontrar caminho para o nosso idioma, com edição da Livros do Brasil. Nos tempos da Guerra da Mudança, é-nos dito, duas facções encontram-se num conflito permanente e milenar entre si: os Aranhas e os Serpentes. Não se sabe como ou porque começou nem ninguém sabe quando ou se acabará. Não se conhece sequer a forma e figura destes seres. A guerra é tudo, menos convencional, pois trava-se na própria natureza do Tempo. Cada facção dispõe da capacidade de viajar pelas eras e alterar o rumo da história. São as próprias batalhas da humanidade, as que existiram e todas as que poderiam ter existido, as que acabam por representar, no fim, a essência desta guerra. E porque a História pode ser alterada por um qualquer agente destas facções, pendendo a favor de uma ou de outra, assim a Humanidade segue na esteira. Inimigos mortais que lutariam em lados opostos numa realidade são aliados na próxima; soldados rasos tornam-se comandantes e logo regressam ao posto inicial; contendas podem tornar-se em batalhas decisivas ou em meros distúrbios. Quando a mudança na História acontece repercute-se pelas eras de forma progressiva, como uma ventania: daí o nome dos Ventos (e Guerra) de Mudança.

Isto torna-se num desgaste intenso para os soldados Aranhas e Serpentes – soldados humanos, recrutados ao longo das eras passadas e futuras da nossa História – , contra o qual se construiram zonas atemporais, isoladas do efeito pernicioso das alterações históricas. Zonas de descanso em que o conflito não é permitido e pelas quais recrutas e soldados experientes passam antes de serem enviados numa nova missão para outra era. É numa destas zonas que a história decorre.

E trata-se de uma história simples. Uma história contada com economia de tempo e espaço narrativo. Muito se escreveu já sobre a natureza teatral do romance, sobre as entradas e saidas coreografadas e os desenvolvimentos dramáticos de cada personagem, que fazem mais sentido numa peça que numa narrativa clássica. O livro é breve e veloz, e é preciso estar atento. O cenário de eterna e confusa guerra alimentaria, possivelmente, uma série de dez grossos volumes por um autor moderno versado em História. Leiber, contudo, utiliza este conceito apenas como cenário – nunca se entra num conflito efectivo, nunca se descreve uma batalha ou uma mudança no tempo a acontecer, os quais são apenas mencionados e explicados no decurso da acção – e centra o enredo numa situação urgente que implica a sobrevivência de um punhado de soldados e agentes temporais e da própria zona de repouso.

A edição conta com quase vinte anos de idade (é de 1992). Como podem perceber pelo exemplo do título, não representa uma maestria da arte de traduzir. Felizmente podem também encontrá-la disponível, gratuitamente e na língua original, neste grande repositório do bom e do mau que é a internet.

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09 Maio 2010

Dias De Feira com chuva. A atitude da APEL perante a chuva e as queixas de estragos e danos por parte dos editores (falta de condições apropriadas) foi de encerrar a feira às 18.00 em pleno sábado com actividades agendadas. Claro, o dilúvio tem olhos e pode ser que passe ao lado. Não só se continua a insistir em fazer um evento ao ar livre em plena época fria (relembre-se que anteriormente só começava no final de Maio e adentrava por Junho - mesmo havendo chuva, havia mais oportunidades para calor e noites agradáveis) como não se prevêm planos de contingência para actos (nem por isso tão) inesperados da natureza. A feira tem durado até tarde, uma solução que felizmente respeita os queixumes do ano passado, mas o vento e o frio têm afastado grande parte do público. Bem como o limite aos descontos. Talvez não entre na cabeça dos editores mas... os livros são caros! A feira é, para a maioria das pessoas, a hipótese de renovarem as estantes de casa sem pagarem a contribuição inútil e excessiva dos distribuidores e livreiros.

Ainda assim, assisti a uma conversa aprazível entre o João Seixas e o Ricardo Pinto, que pensei não falasse tão bem português. Considera-se um autor português, embora não escreva nessa língua. E depois uma pequena volta, a rever pessoas conhecidas do real e do virtual, com particular destaque para as simpáticas Madalena e Sofia.

Hoje a recomendação é preguiçosa - afinal, é domingo e chove, e os bloguistas não recebem salário - e vai recuperar uma crítica antiga. A importância do romance mantém-se e pode ser que ainda o encontrem. Se a Feira não foi levada na enxurrada da noite...

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08 Maio 2010

O Mistério Dos Escritores Fantasma. Por vezes a edição apresenta-nos estas agradáveis surpresas. Um autor, necessitado de ganhar uns trocos, aceita contribuir para a marca mais vendida de uma editora – seja autor, personagem ou colecção –, escrevendo um romance, normalmente sob anonimato. É uma verdadeira prestação de serviços, pagamento garantido, esforço reduzido. No caso em que se trata de uma série, existem normalmente orientações que explicam o grau de liberdade a assumir com os personagens e as situações; por vezes os enredos são à partida delineados pelos criadores da série e o que resta é dar corpo ao esqueleto, encapá-lo e lançar para as livrarias. Não há vergonha nisto – ajuda a pagar as contas, ajuda a desbloquear os dedos, e é mais um livro para o currículo. É pena que não tenhamos em Portugal um mercado e uma prática tão grande que mais e melhores autores consigam subsistir com esta actividade.

E depois, por vezes, temos as tais agradáveis surpresas.

Ellery Queen é um dos detectives mais interessantes da literatura policial. Não tendo granjeado da fama de Doyle e Christie, é no entanto dos poucos que reconheceu a natureza do jogo deste género, tendo ficado famoso pelo seu «Desafio ao Leitor» - chegado a determinado momento na narrativa, é dito ao leitor que se encontra na posse de todas as pistas necessárias para identificar o assassino, e que estas não enganam. A partir deste ponto, a história prossegue para, item por item, irem eliminando os restantes suspeitos até ficar, inequivocamente, o verdadeiro culpado. Fosse a realidade assim tão simples...

Quem conhece o género sabe sem dúvida que o detective foi criado por dois primos nova-iorquinos e que Ellery Queen nunca existiu realmente, encontrando-se no mesmo universo maniqueista de Holmes e Poirot, repleto de agentes do bem que com argúcia científica renegam todas e quaisquer explicações metafísicas, confiantes que a observação do real e do concreto lhes revelará a verdadeira história oculta. É possivelmente um género que, na forma pura, terá mais dificuldade que a própria Ficção Científica em reconhecer soluções divinas ou intervenções fantásticas, devendo os instrumentos do jogo encontrarem-se em cima da mesa à partida. Asimov falava da dificuldade de misturar Ficção Científica e Mistério, pois era necessário, como autor, resistir à vontade de apresentar, vindo do nada, elementos do futuro com capacidade de adivinhação e que estragassem o prazer do jogo ao leitor. Mas por vezes os próprios procedimentos de investigação forense conseguem ser tão avançados que entram na aura do fantástico, como pondera a criminosa de um dos romances de Lawrence Block.

Tendo alcançado a fama e inaugurado uma revista mensal de contos policiais que ainda hoje é publicada, a Ellery Queen’s Mistery Magazine, os primos autores (Frederick Danny e Manfred B. Lee) decidiram alargar o leque de colaborações (supostamente por que Lee atravessava uma crise de bloqueio de escritor) e contrarar outros autores para alargarem o cânone do famoso detective. Eis como, em 1963, surgia uma colaboração invulgar com Theodore Sturgeon, um dos melhores autores de FC dos anos 50/60: The Player On The Other Side.

O tema não podia ser mais propício: a dualidade intrínseca do homem para o bem e para o mal, explorada como um jogo de xadrez entre vítimas e assassino. Uma dualidade, neste caso, concretizada num indivíduo em particular. Um indivíduo capaz de conter multidões. Sturgeon, que não era alheio ao tema da personalidade gestáltica, ao qual dedicara o famoso Mais Que Humanos na década anterior, deu corpo e vida a uma sinopse de 42 páginas preparada por Dannay. Ao resultado final, os primos autores acrescentaram umas coisas e mudaram outras tantas – por isso, infelizmente, não se pode apresentar aquela obra como sendo um texto puro e típico de Sturgeon. Ainda assim, os parágrafos finais, uma íntima reflexão sobre o eu e o outro, têm aquele toque introspectivo de que só este autor seria capaz com tanta maestria.

É um mistério extremamente invulgar no conjunto de romances habituais de Ellery Queen, com um perpretador que, afinal, é do mais divino que pode haver, mas igualmente humano. E mais não digo...

Deixei, contudo, o pormenor mais importante para o fim: o romance foi editado em português. Com o título de O Mistério dos Cartões de Despedida, é um dos números iniciais da colecção de bolso da Europa-América, lançado em finais dos anos 80.

Não deixa de ser uma coincidência interessante que, de entre as dezenas de obras possíveis de escolher, escritas por Lee e Dannay ou pelos futuros colaboradores, a de Sturgeon tenha sido incluida na curta presença de Ellery Queen naquela colecção. E que exista, escondida e discreta, em língua portuguesa, para ser descoberta pelo observador atento. Qual verdadeiro desafio ao leitor.

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07 Maio 2010

Existe Uma Liberdade Intrínseca a um texto mainstream (dir-se-ia «literatura do quotidiano», embora na verdade represente tudo o que não se encontra categorizado como um género) que não consegue ser duplicada pelos autores de Ficção Científica e Fantástico. É uma liberdade patente na voz do narrador e no estilo da história. Os bons textos de mainstream preocupam-se com a experiência da leitura – ao invés de procurarem um estilo transparente, directo, hemingwaysco, sem sabores nem odores, assumem que a percepção da narrativa por via das palavras é diferente, e deverá ser diferente, da percepção visual ou auditiva, e esforçam-se por nos conduzir nessa viagem. O autor de mainstream não se preocupa apenas com a necessidade de contar uma história, mas de como deve contá-la. Obviamente, como em tudo, há exageros ou pressuposições falsas. Um bom autor deixa-se conduzir pelo estilo que melhor serve a história em questão. Os autores menos bons – inclusive os autores que outrora foram bons mas se deixaram estagnar num modo muito próprio de escrever, por que, além de conveniência, também serve de imagem de marca – perdem-se em malabarismos de imagens e metáforas e excessos descritivos e acabam partindo a loiça. Cada história necessita da abordagem que melhor a serve.

Não é por isso de todo disparatado dizer-se, por exemplo, que «havia uma velocidade no teu olhar». É uma questão de contexto. Apresentada assim, despida, corre o risco de tornar-se ridícula. Enquadrada numa descrição sobre a sagacidade do personagem ganha sentido e poesia. O contrário acontece com frases como «o cais é uma saudade de pedra». Esta frase encerra o contexto de si mesma, é uma unidade perfeita, e por isso mesmo serve como epígrafe, citação, descrição e verdade universal, caso seja necessário. Mas é por estes e outros exemplos que o Pessoa é o Pessoa e o autor da frase anterior o mero escrivão desta crítica.

Daí que a experiência de ler mainstream por quem lê exclusivamente obras de géneros, e vice-versa, seja intensamente frustrante. Não se obtém igual tipo de alimento. O leitor de géneros procura a experiência da história, e o texto não é mais do que um veículo eficiente para a mesma. O leitor de mainstream equipara, lado a lado, a história com a efabulação da escrita, e estilos secos e directos apenas podem ser compensados pela relevância do conteúdo - além, claro, dos normais conflitos de expectativas. Possivelmente o mainstream considera que o íntimo é a medida de todas as coisas e que uma história deve considerar o mundo exterior como um incómodo necessário ao centrar-se na evolução da percepção individual, e o género borrifar-se-á tanto para o íntimo do personagem como para o íntimo do vizinho e o que pretende é o deslumbramento infantil de observar a interacção entre objectos, circunstâncias e pessoas enredar-se numa complexidade de padrões e significados. Um encara a existência como uma série de circunstâncias aleatórias das quais pode retirar entendimento, o outro acredita que existem pequenas narrativas ocultas na grande narrativa que é a existência. Como em tudo, ambos estarão correctos, ambos estarão errados.

Onde, por vezes, a distinção entre mainstream e géneros surge mais vincada – e ao mesmo tempo, mais próxima – é na descrição de uma experiência intensamente pessoal. Ao tentar expor-nos algo que imesuravelmente o fere ou encanta, o autor deixa transparecer o seu envolvimento, deixa que a história se conte por si mesma, o que é suficiente para derrubar critérios literários e expectativas. Sabemos assim que estamos perante uma obra-prima.

A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao poderá não ser essa obra-prima, mas sabemos que contém muita dor e vivência pessoal. Basta folhear os capítulos. A mistura de pontos de vista, a existência de capítulos curtos e saltos no tempo, a inserção quase excessiva de notas de rodapé, dá-nos de imediato a sensação que se trata de uma história com muitas facetas e muitos exemplos mas que é na verdade uma história simples. Que há muito para contar, mas é muito do mesmo e portanto há que saber contá-lo. E sem dúvida, a premissa narrativa é explicada nas primeiras páginas, ao apresentar-nos um adolescente «geek» (em tempos chamar-lhe-íamos totó), gordo e socialmente desajeitado, que encontra na Ficção Científica e nos jogos de computador e R&D o seu pouco encanto com o mundo. Esta travessia por um período tão difícil da vida não é ajudada pela necessidade premente de encontrar uma rapariga, por ser amado e aceite num meio latino com uma pressão cultural intensa pela evidência do homem em cada rapaz.

Latino? Sim, Oscar Wao é de ascendência dominicada, como o próprio autor, Junot Díaz, mas cresce num bairro de Nova Jersei. Oscar é então emigrante em terra estranha, mas transporta nos genes e no pensamento os ecos da terra que o gerou. Esses pensamentos ensinam-no que o fukú existe, que é basicamente a má-sorte, o fado, e que quando assenta numa família e numa pessoa, esta encontra-se condenada a um inferno cristão em vida. Terá sido o fukú que lhe deu aquele aspecto e sina, como foi o fukú que condenou a República Domicana a submeter-se ao jugo de Trujillo, um ditador aqui descrito como um verdadeiro animal selvagem que um povo passivo não foi capaz de destronar (bem, o nosso próprio exemplo acabou destronado por uma cadeira defeituosa e pela senilidade, por isso também não temos muito de que nos orgulharmos). Oscar é fruto de uma família desgraçada pelo fukú, cujo azar foi ter uma filha muito bonita que chamou a atenção do ditador – um apreciador de meninas bonitas – e dos seus lacaios. Quem brinca com fogo...

Junot tem obviamente muito para contar, e quase se atrapalha a contá-lo. É também filho de duas culturas, expatriado cultural, e terá sentido que um único idioma não faria jus à salada linguística que lhe povoa o pensamento. A Breve e Assombrosa Vida é assim um livro inglês salpicado de espanhol, ou talvez o contrário – contraste evidente na edição original, mas que se dilui por completo na edição portuguesa. Diga-se de passagem que a Porto Editora assumiu a atitude corajosa de não italicizar o estrangeirismo, embora por vezes isto perturbe a leitura, pois o castelhano não salta tão à vista como no texto original. A tradução é no mínimo competente, com alguns momentos infelizes, quando procura explicar algumas das citações da Ficção Cientifica... ah, não vos disse?

Oscar Wao é um geek que observa o mundo pela lente das suas leituras. Estas parecem confinar-se a Frank Herbert, Gordon Dickson e Tolkien. Compara Trujillo a Sauron e imagina-se Dorsai. Uma atitude que me pareceria natural num adolescente com tais gostos, esta opção de contra-cultura de Junot Díaz foi enaltecida pelos críticos, quer do mainstream quer do género. Francamente, não consegui encontrar igual fascínio. Os críticos do mainstream louvam o autor por assumir a sua street-smartness e geekiness, como se se tratasse de um topping adicional na sobremesa – como se, efectivamente, e dada a história tão emocional em questão, fosse algo dispensável. Os críticos da Ficção Científica apreciam o respeito mostrado aos autores e temas do género, como se de facto as poucas descrições dos seus hábitos de leitura elevassem esta obra a uma introdução a leigos da complexidade inerente ao Fantástico.

Não encontro outras leituras que de tratar-se de uma história quase incomodativamente pessoal, um colocar a nú de velhas feridas – e há que admirá-la por isso. Um nú não apenas familiar mas de todo um povo e uma geração, que precisava de expor as injustiças por que passou face às injustiças que outros reclamam para si. Os melhores momentos do livro não se referem a Oscar Wao – um alter-ego possivelmente deturpado do autor – mas quando regressa a Santo Domingo e ao passado, quando conta a história trágica dos avós e do conflito com o ditador. São momentos poderosíssimos em que Junot apresenta as suas melhores qualidades de contista. Momentos,afinal, sem referências à Ficção Científica.

Um breve mas assombroso livro, sem dúvida.

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06 Maio 2010

Há Pouca Ciência Na Nossa FC. Embora a afirmação mereça ser fundamentada numa reflexão posterior, explique-se no entanto que me refiro à actividade de pesquisa e preparação científica fundamentais a uma obra de verdadeira FC.

E sim, podemos graduar a noção de «verdadeira» em diferentes tons do espectro do género; creio, contudo, que todos chegaremos facilmente a acordo: que as narrativas que têem por base um fenómeno conhecido de natureza científica (validado pelos investigadores ou ainda matéria de especulação), motivando, determinando e no final influenciando o decurso da história, irão destacar-se das que se preocupem com o factor humano ou íntimo em cenários futuros, alternativos ou pseudo-tecnológicos, e das que, por muito que atirem com jargão científico e salpiquem com pós de futuro, encontram no conflito entre os personagens, e apenas neste, a razão de ser do enredo.

E hard-SF, na nossa língua portuguesa, pelo menos na variante europeia, é raça que até pode existir, mas nunca foi avistada...

A recomendação de hoje vai então dar destaque, não à ficção mas à ciência. O Património Genético Português – A História Humana Preservada Nos Genes (por que um bom livro de divulgação científica requer sempre um título sério seguido de um sub-título mais explicativo) é um ensaio inesperado mas muito pertinente, que resulta da colaboração entre Luísa Pereira e Filipa M. Ribeiro. Como nestas coisas o currículo é importante, rapidamente se percebe que Luisa é bióloga, doutorada em genética populacional humana, investigadora do IPATIMUP e professora afiliada da FMUP. Filipa, por sua vez, é jornalista científica e mestre em Comunicação e Educação da Ciência. E (revelação terrível!) ambas são mais jovens que este vosso leitor...

É um prazer descobrir que a pequena comunidade científica do nosso país escreve artigos e é publicada e reconhecida internacionalmente – a internacionalização surgindo, não só como característica inerente ao meio como necessidade de sobrevivência face à nossa pequenez. Que haja uma história particular do nosso país que possa e mereça ser contada pelos genes, é um pensamento inovador, razão pela qual este pequeno e curto livro se torna tão interessante.

As autoras estruturam a apresentação de forma clara: primeiro explicam de que se trata e como se pode medir a Genética Populacional – pelo ADN mitocondrial (contribuição da mãe) e cromossoma Y (contribuição do pai). Neste processo, dos que não se reproduzem nem fazem por se reproduzir não reza a História. A seguir levam-nos numa viagem pelas eras, pelo surgimento do Homem e primeiras migrações pré-Históricas, revelando as pistas que se escondem nos genes actuais. O foco centra-se a seguir na Europa e no Paleolítico, explica a contribuição das Idades do Gelo para a actual dispersão humana e acaba por se centrar em Portugal, particularmente nas influências das populações africanas no nosso património genético, olhando para os exemplos de Belmonte e Mértola (exemplo que me é pessoalmente caro) antes de discorrer sobre as «influências» que os nossos digníssimos exploradores quinhentistas foram deixando por esse além-mar fora... As autoras salientam que uma das grandes questões é haver mundialmente maior homogeneidade feminina que masculina, algo talvez explicado por haver maior mobilidade, historicamente, para as mulheres que para os homens, além do factor poligamia.

O livro é conciso, directo, rico em factos, como se pretende. É interessante e bem estruturado – mais estruturado do que o próprio processo de descoberta científica, cheio de saltos, recuos, dúvidas, frustrações, até ao momento de glória em que tudo encaixa. Infelizmente, o que falta ao livro, enquanto material de divulgação científica para um público amador, é precisamente a rota da descoberta, o envolvimento emocional da investigação. É tão-somente uma questão de linguagem, nada mais. Seguir o investigador ou a comunidade científica de revelação em revelação, em particular as que contrariam as ideias vigentes derivadas da arqueologia e da antropologia: em que medida a genética populacional vem iluminar preconceitos ou suposições daquelas disciplinas ? Em que medida complementa os nossos conhecimentos históricos?

As autoras procuram efectivamente enquadrar a genética como uma forma de conhecimento do Eu, do ser humano, e sem dúvida que há ainda muito por descobrir. Não se questiona o fascínio. Mas enquanto objecto livro, penso haver espaço para melhorias.

Ainda assim, mais uma grande aposta da colecção «Ciência Aberta» da Gradiva, que ainda mantém alguma da aura que há uns anos a tornava na série de divulgação científica mais procurada do mercado. Algo que é tão ou mais raro que colecções de Ficção Científica. Para nossa pobreza.

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04 Maio 2010

A Minha Recomendação de hoje chega-nos dos confins da memória. Estava-se em 1984 e noutro país: um país de escudos que mantinha fronteira com Espanha, apenas tinha uma ponte olissiponense sobre o Tejo e o microprocessador dominante não era Intel mas algo chamado Z80A que sustentava uma pequena caixa chamada Spectrum na qual muitos dos actuais programadores-séniores aprenderam o ofício.

Nesse ano, um ano mágico para a FC, que chegou a assistir à publicação mensal de quatro livros da colecção de bolso da Europa-América, aos quais se acrescentava a contribuição unitária da colecção Argonauta (compare-se com o raquítico número de quatro a cinco títulos por ano de hoje em dia), mantinha-se, ainda que de forma pouco convicta, uma colecção de bolso que juntava todos os «géneros menores» no mesmo prato: a BolsoNoite da Europress. Livrinhos pequenos de identificação cromática por tema, cujos números alternavam entre Western (tons amarelos), FC (tons azuis), Terror (tons negros) e Policial (tons vermelhos).

A Europress tinha uma tendência para publicar os mais conhecidos autores de pulp fiction nacional dos anos 70 (Roussado Pinto e Luis de Campos) – creio que o próprio Luis de Campos chegou a dirigir a colecção – e inclusive andou à procura de originais portugueses de FC. O primeiro livro do género seria a novelização do filme Tron, em 1983 (o qual me levou a ter uma nota menos boa num teste de História pois na véspera, ao invés de embrenhar-me nos estudos, perdi algumas horas a ir ao cinema e a desvendar o livro – há traumas que marcam, mas que valem a pena...), e desde então a colecção lá ia sendo publicada com ritmo irregular.

Obviamente que prestava mais atenção aos títulos de FC que dos outros géneros, embora então cultivasse um leque de leituras muito diversificado, graças ao tempo e ao interesse, que eram mais latos. A BolsoNoite incluia autores pouco habituais da Argonauta e da Europa-América, em particular o John Brunner. Após um interregno, chegaria a incluir, disfarçadamente, Um Caso de Consciência, de Blish, e A Rosa, de Harness, numa fase posterior de tentativa de reanimação falhada por parte da editora. Foi no entanto a primeira colecção a apresentar-nos C. J. Cherryh, e em particular, Vaga Sem Praia.

Vaga Sem Praia é uma novela curta e relativamente ligeira, que decorre na cidade de Kierkegaard do continente de Sartre do planeta Liberdade. Nessa terra, vive uma cultura humana cujo cerne da existência é o desenvolvimento do Eu. Não o Eu enquanto oposição perante o universo, mas o Eu enquanto medida de todas as coisas. O Eu enquanto centro e motivo de existência da própria realidade. Daqui decorre um conflito inevitável entre percepção e possibilidade, posto a nu pela interrogação do artista. Este artista é Herrin, cuja maestria com o cinzel e a pedra o tornam no mais popular e conceituado cidadão de Kierkegaard, despertando inveja e ressentimento em Waden, que faz o papel de político e de protagonista opositor nesta história (só mesmo na literatura é que os artistas são mais influentes que os políticos...) Para complicar são apresentados alienígenas e humanos Invisíveis, à margem da sociedade, ignorados por decreto social, cuja existência deverá ser integrada no fim para se atingir uma verdadeira compreensão do cosmos e em grande medida do Humano.

Se esta descrição não parece entusiasmante, o problema é da descrição e das décadas que separam a minha leitura, e não do livro. É, creio, um livro para jovens, ou para mentalidades jovens, ainda capazes de questionar o instituido e aceitar o diferente. Apresentar-nos de forma vívida sociedades de seres como nós mas que pensam de forma inesperada, com sistemas de valores quase incompreensíveis, é uma das grandes e antigas competências da FC. Este livro vale por isso, e pelas questões de identidade que coloca (o que é o Eu? Em que medida o Eu determina o valor do Outro?).

Pensar que em tempos se conseguia escrever FC assumidamente filosófica, ambientada em terras estranhas para disfarçar parecenças com a nossa... Pensar que, mais do que a dificuldade de publicar-se obras recentes de FC, encontrar hoje um editor que apostasse numa obra destas - cuja natureza está na especulação intelectual e não no ritmo trepidante da acção - é uma probabilidade estatística inferior à congelação de uma panela de água quando colocada ao lume...

Se correrem, vão encontrá-la nesta Feira do Livro – espero. Costumava ser vendida no meio de packs de 3 títulos da colecção.  Com um pouco de sorte, mesmo passados tantos anos, continuará ainda à vossa espera.

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